SOBRE O MARAVILHOSO
O maravilhoso, ou um determinado aspecto do real, acontece como remanescente da vida sem que dentro desse nosso devir, alguma coisa o possa conter. É um dos atributos que qualifica a prática artística, quando o tédio de todas as horas é substituído naquele momento e não outro, por uma centelha de vida que se troca por aquilo que até à data, não sabíamos o que podia ser. E raramente o poderemos saber. O que não podemos negar, a partir daqui, é o facto de passar a existir mais um objecto no mundo. De uma forma que qualifica aquilo que sabemos sobre ele, alterando a nossa percepção do que conhecemos, permitindo-nos compreender um pouco mais.
A ideia de maravilhoso neste contexto circunscreve-se num campo rarefeito preocupado com a ideia de “fazer arte”[1], dentro das contingências e das circunstâncias que isso implica. Sabendo nós delinear o que será cabalmente executar esse procedimento e conseguiremos apontar o local, nessa geografia, onde o maravilhoso pode ser compreendido. É aqui que surge a primeira dificuldade. É muito difícil senão quase impossível conseguir demarcar o que é ou pode ser o procedimento que designamos de - actividade artística.
“Fazer arte” é um procedimento, uma ocupação e um desígnio que ao longo do tempo foi perdendo a sua gravidade, para hoje, se tornar num agregado de metodologias particulares que ganham legitimidade e uma identidade, na medida que o seu “operador” as repete e assimila como a sua prática, posteriormente reconhecida pelos mecanismos sociais para o efeito, como tal. Dentro dessa metodologia, pode caber quase tudo, desde que os seus interlocutores consigam compreender ou estejam abertos a vivenciar o resultado, segundo a bitola, determinada, pela prática do artista. A natureza da experiencia destes procedimentos, pode ser a mais diversa, nunca Flaubert esteve tão certo quando escreveu:
“A moralidade da arte resume-se para cada um ao aspecto que lhe lisonjeia os interesses. Ninguém gosta de Literatura.”
Ao longo dos séculos o sistema das academias, democratizado no século XX, veio abrir a oportunidade da legitimação da prática artística, a uma maioria generalizada, que apesar de ter acesso, na sua maior parte, não consegue materializar um caminho até á prática. O horror à Literatura não é o único dos obstáculos, deste acontecimento. O caminho para a prática é uma empreitada árdua, repetitiva, castradora de algumas liberdades, apesar de tudo ser permitido. Só por intermédio de uma disciplina estóica julgo podermos aspirar ao silêncio e ao desapego necessários para que a metodologia do que fazemos se torne um legítimo processo de “indagação” daquilo que sabemos, e que na sua maior parte, só vamos reconhecer depois de ter feito. É neste campo aberto de reminiscências dos romances dos outros, e de descoberta de objectos e modos de fazer, que na maioria dos casos, têm um lado muito menos pessoal, do que se pensaria a priori, que habita a arte contemporânea. Entidade complexa, sinónimo de tudo o que temos falado e paradoxalmente também de um mercado e de um índice de valor paralelo ao de quaisquer bens de consumo. Deste modo estamos a falar, de um contexto bastante particular, de uma actividade que elege uma matéria-prima, qualificável pelo seu valor simbólico e conceptual; um bem de consumo de carácter excepcional em raridade, que deveria adquirir um valor pecuniário em conformidade com a legitimidade da “brand” do artista e o índice a que corresponder a sua procura/aceitação no mercado.
Sendo assim, discursos românticos da arte enquanto uma aspiração a uma ascese, quase caem por terra. A ideia de maravilhoso é algo contraditória que se joga nos mais variados tabuleiros. Pode ser aquilo que o espectador reconhece do gesto, da “marca primordial” que o artista fez, mas também pode manifestar-se sob inúmeros outros pretextos.
É de certa forma estranho que a manutenção da actividade artística, alheada nos seus trâmites de produção, de muitos dos deveres e obrigações da moralidade daquilo que se convencionou chamar a “uma vida em sociedade”, privilegiando em vez disso, “vivencias por intermédio de éticas particulares”, seja patrocinada e mantida pelo meio que os mais ingénuos e os mais desafogados se permitem apontar como pernicioso - o capital. Por outro lado, se é o capital e toda a sua arquitectura, que permite que um tipo maravilhoso[2] se manifeste com maior periodicidade, também é ele um dos vilões, apontado como o culpado por um mundo em falta de espanto.
Apesar disso, para vislumbrar o maravilhoso, podemos unicamente, permanecer no ateliê. O maravilhoso também se evidência naquilo que está por ser. Naquilo que nunca vai ser e que por essa razão dá respaldo a tudo o que se efectiva. Quando consideramos o lado universal das coisas estamos a ter em conta uma “medida imponderável” onde um raciocínio binário (bom/mau; vivo/morto; real/ virtual;) ganha a importância relativa de tudo aquilo que se possa regatear. Não falamos de um campo onde as repercussões dos nossos actos tenham um desfecho directo e vinculativo, uma vez, que chegados a este ponto, estarmos a planar na estratosfera da verdadeira abstracção do pensamento. Desse modo quando enunciamos um nome e ele ganha a representatividade de tudo o que pode ser, estamos a considerar, em relação a esse substantivo, todos os significados que conseguimos compreender, todos aqueles que não sabemos, e também, tudo aquilo que por força do nosso contexto cultural não vamos compreender como o faria outro indivíduo num diferente ponto do globo. Não obstante tudo isso, quando agimos e produzimos um novo trabalho estamos a agregar ao “repertório” desse substantivo, mais uma imagem que lhe faz referência, estamos a abrir mais uma via naquilo que “essa coisa” também pode ser. É dentro destes meandros da percepção e do significado que muitas vezes se escondem acontecimentos que podem invocar o maravilhoso. Acontecimentos despoletados, por novos encontros desses signos com aspectos que lhes sejam particulares, e que possam conferir novas interpretações polissémicas.
Fora do ateliê também existe um terreno para o maravilhoso. Um território tão vasto que começa dentro de nós e se espalha para todo o mundo, provocando avistamentos e encontros com o maravilhoso nos mais curiosos lugares. Mas como pode o dentro de nós fazer parte de fora do ateliê?
O ateliê afigura-se para além da sua dimensão física como um espaço para onde o artista reserva um determinado tipo de pensamento. A natureza desse raciocínio, tira partido de várias competências da sua inteligência, exigindo neste contexto, um sentido de desapego. Uma necessidade de passarmos para segundo plano a nossa “individualidade”, e colocarmo-nos ao serviço daquilo que estamos a fazer. Nesse sentido quando o maravilhoso se manifesta no ateliê independentemente de como isso ocorra, será sempre uma ocorrência proporcionada pelas circunstâncias ocasionais do favorecimento de um modus vivendi[3] entre a praxis que o artista desenvolve e uma circunstância particular que o “ateliê” despoletou. Embora a prática seja um aspecto da vida de um artista que nunca o abandona o ateliê é o sítio onde ela pode ganhar, pelas razões mencionadas, a sua maior expressão.
O maravilhoso ou a manifestação do real no contexto da nossa vida diária é algo que pode ocorrer num espectro bastante alargado. Não tem necessariamente uma conotação ética. Não existe um julgamento ou um juízo a tirar daí. A única coisa que podemos fazer é assinalar a sua ocorrência, e reenquadrar, nas possibilidades e no imponderável que trouxe para à frente, a necessidade de compreender a nova realidade que gerou. No caso do artista com a sua obra, estes acontecimentos apontam caminho. Um caminho que é um consequência do trabalho, do fazer, que se afasta gradualmente dos desígnios das tendências do mercado e daquilo que são os ditames, que as suas lógicas possam prescrever.
Na vida fora do ateliê estas manifestações ocorrem de forma muito mais dispersa podendo manifestar-se em acontecimentos que a priori, não vamos admitir como benéficos na nossa vida. Alvar Aalto a propósito do seu métier diz-nos:
“Existe uma regra na arquitectura: construir com naturalidade. Não faças nada pomposo ou exuberante, não construas o que não é necessário. Tudo o que é supérfluo com o tempo torna-se feio.”[4]
O maravilhoso é um dos orquestradores deste acerto, desta conta que a manifestação dos nossos actos e a interpretação do que podemos fazer, a partir das elações do que nos acontece, providencia. Fora do âmbito desta ética, (que pode ser cultivada em redor de uma procura de simplicidade) existe pouco que possamos fazer para ter a segurança de que algo desta ordem se possa manifestar.
É extremamente difícil elencar os predicados e os defeitos de algo que parece acompanhar-nos no decurso da nossa vida e que na sua maior parte não se manifesta de forma cabal e evidente.
No pensamento contemporâneo existem incontáveis exemplos de relatos sobre este tipo de manifestações do real. Foquemos a nossa atenção em três casos particulares:
A.
Para Agamben o Irreparável é:
“… É o facto de as coisas serem como são, deste ou daquele modo, entregues sem remédio à sua maneira de ser. Irreparáveis são os estados das coisas, sejam elas como forem: tristes ou alegres, cruéis ou felizes. Como és, como é o mundo – é isto o Irreparável.”[5]
O filósofo argumenta sobre a perenidade do mundo no que diz respeito à sua condição ou natureza de ser-assim, onde a doutrina da unidade dos contrários de Heraclito[6] se esbate e funde no real revelando uma singularidade que parece maior do que qualquer idiossincrasia humana. De tal forma, que todas acabam por verter para a plenitude/vazio de tudo o que simplesmente existe.
“O Irreparável não é nem uma essência nem uma existência, nem uma substância nem uma qualidade, nem um possível nem um necessário. Não é propriamente uma modalidade de ser, mas é o ser que se dá desde logo na modalidade, é as suas modalidades. Não é assim, mas é o seu assim.”[7]
Conhecer o conceito de Irreparável de Agamben é importante para tentarmos aproximarmo-nos do sentido da natureza do maravilhoso. Quando falamos da natureza do que é o maravilhoso e tentamos compreender alguma coisa da sua ontologia, estamos a apontar para um tipo de acontecimento fugaz, que apesar dessa natureza fugidia, não perdeu em nada, nenhuma das características que pode partilhar com o conceito de Agamben. De facto, no seu cerne, a evidência do maravilhoso é um evento, que comunga do sentido de perenidade que assinalámos e que é próprio daquilo que se caracteriza por ser-assim.
As implicações do ser-assim no ateliê vão ser bastante diversas daquelas decorrentes de uma análise num espectro mais alargado do resto da vida de um indivíduo.
Esta ideia de ser-assim, de uma ocorrência inevitável e inesperada, que decorre da existência de um determinado objecto é importante para a ideia de prática. No sentido em que quando dizemos que é necessário desapego (na prática) estarmos a fazer jus a um argumento que valoriza a ideia desse conceito em particular. A ideia do desapego como um veículo para a prática artística vem desta necessidade de tentar fazer sem julgamento ou finalidade imediata, tentando desviar as nossas idiossincrasias, de modo que, aquilo que estamos a fazer, possa ser-assim, o mais próximo do que deve, aspirando a que se cumpra enquanto tal. Quando esse acontecimento se verifica na maioria das vezes estamos na presença de uma obra despoletada pelo maravilhoso.
Na cultura chinesa a palavra Kung-fu, para além de estar ligada à sua acessão mais comum (artes marciais) no ocidente, pode também, ser aplicada a todo o processo que necessite de paciência, energia e tempo para ser levado a bom porto. Na sua verdadeira acessão refere-se a toda a disciplina ou prática adquirida por meio da abnegação e do trabalho árduo[8]. O ateliê nesse sentido é um lugar de Kung-fu, onde o maravilhoso está em potência sempre pronto a poder verificar-se. Esta forma de maravilhoso, particular ao ateliê é em certa medida o seu modo de ser-assim. Se o entendermos com um instrumento ao serviço da prática, e não só como o espaço onde esta se “pratica”, podemos admitir o ateliê como o local, onde um certo tipo de acção se reserva e se enquadra no contexto da vida de um artista. Desse modo, ir ao ateliê é mais do que ir para o local de trabalho; é também, permitir que uma atenção e uma intenção na consciência do artista se posicionem por um diapasão privilegiado com o intento de se debruçarem sobre o seu trabalho e sobre a sua prática. A condição de ser-assim no ateliê, está desta forma ligada a uma conduta, que por sua vez condiciona e molda a prática, para caminhos mais próximos do seu verdadeiro devir. É graças à repetição de uma metodologia que o acto “do fazer” se pode libertar de mitos e condicionalismos e se pode aproximar daquilo que pode ser.
B.
Dentro da arquitectura heidegeriana o conceito de dasein ocupa um lugar importante sobre o qual nos podemos apoiar alguns aspectos da nossa ideia de maravilhoso. De uma maneira geral, o ser-aí é uma construção que dá respaldo a uma ideia de ecossistema[9] onde o poder-ser ganha a projecção que necessitamos para abordarmos o nosso foco de interesse. O conceito de Heiddeger traz consigo a ideia de um ser-no-mundo, focado numa perspectiva do que pode a condição humana. Esta ideia de que existe um ecossistema onde o sentido-de-si de cada um, pode e é afectado pela experiencia-em-si, do outro, é importante na medida, em que lança terreno fértil, para que ignições, como o maravilhoso, possam acontecer.
Por outro lado, coloca questões pertinentes em relação à própria prática artística. Problemas sob os quais o autor também se debruçou, no que concerne à natureza da arte e das suas tautologias. Importante para a nossa argumentação é o seu conceito de ser-obra, que advoga como sinónimo de – levantar um mundo.
“Ser-obra significa: levantar um mundo. Mas o que é isso – um mundo? […] O mundo não é o mero agregado de coisas, contáveis ou incontáveis, conhecidas ou desconhecidas, que estão perante. Mas o mundo não é também um enquadramento apenas imaginado, representado para além do somatório do que está perante. O mundo faz mundo e é sendo mais que aquilo que é apreensível e perceptível no [meio do] qual nos julgamos “em casa”. O mundo nunca é um objecto que esteja ante nós e que possa ser intuído. O mundo é aquilo que é sempre não-objectivo, de que dependemos enquanto as vias do nascimento e da morte, da bênção e da maldição nos mantiverem enlevados no ser.”[10]
Voltando à ideia que iniciou este ponto, importa agora, debruçarmo-nos sobre o dasein, quanto à sua etimologia; composto por “da”(aí) e “sein” (ser) que à letra se traduz ser-aí. Se olharmos para o “ser” de ser-obra, compreendemos como essa construção consegue explorar pela linguagem algo bastante mais vasto do que o espectro do nosso entendimento, pode de forma desarmada, compreender. O ser-obra configura-se como uma das construções mais universais, no que diz respeito, à nomeação do que pode ser uma obra de arte, uma vez, que sem abdicar de todas as características particulares ao ente da obra, agrega todo o potencial que o facto de estar-a-ser lhe confere.
Ora o maravilhoso de que falamos, para lá de se poder assemelhar ao curto-circuito que pode tornar um ser em ente, é também, o instante em que o ser-obra troca o potencial do que pôde ser, porque não se cumpriu, pelo o potencial daquilo que pode (a partir dali), enquanto tudo o que é. O maravilhoso é assim uma manifestação do mundo que indicia uma transformação.
C.
“(…) o conhecimento é uma função do imaginário , uma incessante idealização”[11]
Importa por último abordarmos sucintamente uma das ordens psicoanalíticas apontadas por Jacques Lacan – o real. Pelo Real nestes termos, entende-se aquilo que não sai do lugar; aquilo que não é uma coisa, nem um objecto no mundo, nem um corpo, nem mesmo uma “realidade”; o real é aquilo que suporta a nossa realidade social e paradoxalmente é tambem a fonte dos entraves de todas as suas contigências. Segundo a enciclopédia de Psicanálise Lacantina “enquanto um ser-em-si, o real transcende o reino das aparências e das imagens”[12] continua, dizendo, “é discrito como concreto – é a materialidade que existe antes da simbolização. O real não existe, enquanto experiencia é criado como um produto do pensamento e da linguagem e o real precede a linguagem. O real é aquilo que resiste permanentemente à simbolização.”
Depois de sublinarmos este termo complexo, importa enquadra-lo no nosso pensamento.
Previamente abordámos conceitos como o irreparável e dasein que em alguma parte se assemelham e compartilham com o real alguns das seus predicados. A pertinência de elencar três conceitos desta ordem, vem da necessidade de pela sua triangulação tentar compreender o que pode ser o maravilhoso em face do que estes três conceitos apontam. Desse modo podemos entender o irreparável, como algo que vamos identificar, presente na natureza do maravilhoso. Falaremos de seguida, do dasein como o seu ecosistema e do real enquanto a sua geografia.
Por maravilhoso entendemos o momento particular em que por intermédio de um sentido de ser, aquilo que existia, unicamente no plano do Real, e que, pode dizer respeito à prática do artista, inicia o processo de increver-se de forma irreparável, numa linguagem e na prática de do seu contexto de criação. Este processo não tem de levar necessariamente à execução de uma obra, muitas vezes, vai ser apenas um afloramento de uma intenção frutuita, alguma coisa que ao acontecer, vai viabilizar a espontaneadade e a fluidez do pensamento criativo, permitindo que o fluxo desse racional possa actualizar-se de modo a chegar onde deve.
A circunstância desta ocorrência ganha uma operacionalidade, mediante uma permissão tácita e gradual, no contexto da vida e da prática de cada um. Aquilo que num primeiro momento pode ser vivido com “verve” e algum deslumbramento, ganha com o passar do tempo uma jurisprudência mais certeira nos seus interesses e uma fruição mais calma, própria da compreensão, daquilo que pode trazer para a vida de quem faz – um momentâneo desapego do mundo.
Neste contexto, o atelier desempenha um papel importante enquanto “o veículo” que permite saber, de um modo mais sistematizado, alguma coisa desta actividade, além da sua inerente natureza irreparavel. É quando o desejo e a razão entram nesta esfera que surgem entraves, a este processo, que vive da aceitação e da certeza de que nós (enquanto criadores) devemos ser um medium não a origem.
Deste modo, pensemos como surge esta ideia do Dasein enquanto ecossistema para esta economia da prática. Se pensarmos na ideia clássica de ecossistema enquadrada na Ecologia vamos compreender que é um mecanismo, que se processa da relação dos efeitos causados pelos organismos em um ecossistema, e a decorrente evolução das populações que os comportam (factores bioticos); e tambem, das influências que esses organismos possam sofrer desse biotopo em particular (factores abioticos). Na argumentação de Heiddeger, quando este fala da obra de arte e da sua condição de ser-obra, caracteriza-a como uma luta entre o mundo e a terra. Entenda-se como “mundo” um campo alargado do “ser” e a terra como :
“[…] a terra faz com que qualquer tentativa de intromissão em si se despedace contra ela mesma. Leva a que qualquer importunidade meramente calculadora se transforme numa destruição. Esta bem pode estar investida da aparência de um domínio e de trazer consigo o progresso na forma da objectivação técnico-científica da natureza, mas este domínio não é senão uma impotência da vontade. A terra só aparece abertamente clareada, enquanto terra, onde é guardada e reguardada como aquilo que é essencialmente insusceptível de ser descerrado, que recua perante qualquer descerramento, o que significa que se mantem constantemente encerrada. Todas as coisas da terra, e ela mesma no seu todo se derramam numa unissonância recíproca.”
A razão para escolhermos o dasein, como o elemento a ser tido como a metáfora para “ecossistema”, e não a ideia de ser-obra, prende-se com o facto, de no primeiro termo, estarmos a considerar uma circunstância enquadrada dentro do espectro da experiência humana. O ser-ai reporta sempre ao humano e são aqueles com que partilhamos a nossa condição de humanidade, aqueles que podem ter acesso ao maravilhoso. Apropriando-nos dos termos da ecologia, tentemos pois, encontrar aspectos “bioticos e abioticos” dentro do cenário de afectações que aqui nos interessa. Ou seja, onde estão e como se dão os intervenientes no biotopo em causa?... e qual é a natureza das trocas que se propocionam?
Sendo o atelier, o espaço de eleição para a normalização da prática, e consequentemente, o local, onde a ocorrência, com maior periodicidade, do maravilhoso, pode acontecer, importa sublinhar, que sem o artista, o atelier é unicamente um edificado. É o artista e a sua prática que tornam esse espaço, (um lugar comum à partida) numa geografia particular. Ora desse ponto podemos também identificar uma analogia bem clara entre o atelier e o conceito de ecossistema. No entanto, antes dessa comparação ser feita , existe outra mais importante para o artista, e que vai de encontro ao conceito de dasein e também de ser-obra que assinalámos anteriormente.
Olhando para o artista como um individuo, parte mundo e parte terra[13], capaz e responsável pelas suas circunstâncias, e pelas suas contingências, podemos compreender, como é nesse contexto, que se desenrolam as trocas de energia, que dizem respeito ao acontecimento que nos tem tomado a atenção. Dessa forma, o maravilhoso acontece dos movimentos tectónicos decorrentes desse confronto entre aquilo que podemos fazer e aquilo em que o que fazemos, se torna. Nesse sentido, o momento do maravilhoso, é aquele, onde uma parte disso se joga.
É da jurisprudência do maravilhoso e do consumar consecutivo de ignições consequentes e materializadoras de trabalho que deixamos de falar de um plano de afectação próximo de um instinto ou de uma percepção supersticiosa e passamos a falar do inventário daquilo que está feito. Da parte de mundo que é, em cada artista, e da parte de terra, que também o qualifica, surge alguma coisa que é mundo e terra segundo a sua própria ontologia. Uma ontologia criada a apartir de mecanismos autotrofos decorrentes do real, que se o artista souber interpretar de uma forma compassiva, poderão originar objectos singulares e universais.
Sendo assim, o conceito de dasein configura-se num local onde um fluxo autotrofo[14], será composto pelas relações entre o “acesso” ao “real” de um indivíduo e as potencialidades do que pode, ser e fazer, no espectro da sua prática. Já aquilo que vamos chamar de “fatores bioticos”, será nesse sentido, o numero de ocorrências do maravilhoso que origina a produção de sentido de uma determinada prática criativa. Os factores abioticos, por sua vez, neste cenário, serão aqueles que dizem respeito à natureza do indivíduo que explora esse campo de trabalho e tudo aquilo que ele é enquanto um ser-no-mundo.
Reclamar no real a geografia do maravilhoso é apontar para as coordenadas da sua origem. Tal como nos é descrito por Lacan, enquanto um ser-em-si, o real transcende o reino das imagens e das aparências[15]. Consideremo-lo então, algo tão comum, quanto a importância do sol para um ecossistema. É graças à capacidade de alguns seres vivos possuirem habilidades autotrofas que a luz do sol pode ser absorvida por eles, originando um círculo virtuoso, que vai permitir o perpetuar da viabilidade dessa comunidade. De algum modo, é a “relação criativa” de um indivíduo, com a sua condição de ser-no-mundo, pautada por afectações e reações, que vai provocar uma resposta do “real”, e configurar o local, onde, ainda longe da linguagem, se alimenta o que mais tarde pode ganhar a forma de um fluxo de trabalho. Sendo o artista um medium, desse modo, das manifestações que vão resultar do desapego que cultiva, por aquilo que deixa materializar no mundo.
[1] Mas que amiúde pode perfeitamente ser transposto para um vasto leque de situações e contextos.
[2] Pela produção artistica que permite, e que de outra forma não seria possivel. Existe no mundo de hoje uma ligação umbilical entre o acesso aos meios de produção e a produção artistica. Desse modo, o nosso encontro com o maravilhoso, nestes termos com uma indole mais estetica, está largamente condicionado com a oportunidade que os artistas tenham para levar a cabo o seu trabalho.
[3] Existe na vida de todos aqueles que cultivam qualquer tipo de pensamento criativo sempre esta dicotomia entre aquilo que fazemos no atelie (ou estudio ou palco, etc.) e o resto das nossas vidas. Embora a ideia de uma ideia nunca nos abandone, existe sempre uma reserva no nosso quotidiano quando por alguma razão, alguma coisa nos provoca espanto. Essa manifestação do maravilhoso, diária e corriqueira, é uma das forças motrizes que nos empurra para o atelier e nos faz querer saber mais sobre aquilo que fazemos. A única verdadeira maneira de isso acontecer , está no exercicio persistente do fazer. É pelo fazer que o artista descobre o que pode ser o seu contributo.
[4] Tradução livre do inglês.
[5] Escrever ref bib
[6] “A doutrina da unidade dos contrários é talvez o aspecto mais original do pensamento filosófico de Heráclito. A lei secreta do mundo reside na relação de interdependência entre dois conceitos opostos, em luta permanente; mas, ao mesmo tempo, um não pode existir sem o outro. Nada existiria se não existisse, ao mesmo tempo, o seu oposto. Assim, por exemplo, uma subida pode ser pensada como uma descida por quem está na parte de cima. Entre os contrários se cria uma espécie de luta constitutiva do logos indiviso.[…] A partir de seus pressupostos - panta rei e a guerra entre os contrários -, Heráclito definiu uma arché, um princípio que está em todas as coisas desde a sua origem: o fogo. Para ele, "todas as coisas são uma troca do fogo, e o fogo, uma troca de todas as coisas, assim como o ouro é uma troca de todas as mercadorias e todas as mercadorias são uma troca do ouro"; ou seja, todas as coisas transformam-se em fogo, e o fogo transforma-se em todas as coisas.” in Wikipedia https://pt.wikipedia.org/wiki/Her%C3%A1clito, 3 de janeiro de 2019.
[7] Idem , nota rodape 5
[8] Wikipedia em https://en.wikipedia.org/wiki/Kung_fu_(term), 3-01-2019
[9] Por ecossistema, normalmente, entendemos… “(Gregos: oikos {οἶκος}, casa + sistema {σύστημα}, sistema) define o conjunto formado por comunidades bióticas que habitam e interagem em determinada região e pelos fatores abióticos que exercem sobre essas comunidades” in wikipedia, 4 de janeiro de 2019. A partir deste conceito vamos tentar tirar ilações uteis para a nossa argumentação.
A ideia de considerar o conceito de dasein enquanto o ecossistema, onde o maravilhoso pode acontecer, vem apoiada pelo enorme sentido dialéctico, que toda a sua construção oferece. De facto, grande parte do que a obra pode-ser joga-se na fluência que o dasein presente no artista tem enquanto ser-no-mundo.
[10] Ref bib.
[11] Lacan semarios completar
[12] Ref bib idem cima
[13] Referente aos termos de heiddeger.
[14] Ou produtores primarios.
[15] No subject ref bib
A ideia de maravilhoso neste contexto circunscreve-se num campo rarefeito preocupado com a ideia de “fazer arte”[1], dentro das contingências e das circunstâncias que isso implica. Sabendo nós delinear o que será cabalmente executar esse procedimento e conseguiremos apontar o local, nessa geografia, onde o maravilhoso pode ser compreendido. É aqui que surge a primeira dificuldade. É muito difícil senão quase impossível conseguir demarcar o que é ou pode ser o procedimento que designamos de - actividade artística.
“Fazer arte” é um procedimento, uma ocupação e um desígnio que ao longo do tempo foi perdendo a sua gravidade, para hoje, se tornar num agregado de metodologias particulares que ganham legitimidade e uma identidade, na medida que o seu “operador” as repete e assimila como a sua prática, posteriormente reconhecida pelos mecanismos sociais para o efeito, como tal. Dentro dessa metodologia, pode caber quase tudo, desde que os seus interlocutores consigam compreender ou estejam abertos a vivenciar o resultado, segundo a bitola, determinada, pela prática do artista. A natureza da experiencia destes procedimentos, pode ser a mais diversa, nunca Flaubert esteve tão certo quando escreveu:
“A moralidade da arte resume-se para cada um ao aspecto que lhe lisonjeia os interesses. Ninguém gosta de Literatura.”
Ao longo dos séculos o sistema das academias, democratizado no século XX, veio abrir a oportunidade da legitimação da prática artística, a uma maioria generalizada, que apesar de ter acesso, na sua maior parte, não consegue materializar um caminho até á prática. O horror à Literatura não é o único dos obstáculos, deste acontecimento. O caminho para a prática é uma empreitada árdua, repetitiva, castradora de algumas liberdades, apesar de tudo ser permitido. Só por intermédio de uma disciplina estóica julgo podermos aspirar ao silêncio e ao desapego necessários para que a metodologia do que fazemos se torne um legítimo processo de “indagação” daquilo que sabemos, e que na sua maior parte, só vamos reconhecer depois de ter feito. É neste campo aberto de reminiscências dos romances dos outros, e de descoberta de objectos e modos de fazer, que na maioria dos casos, têm um lado muito menos pessoal, do que se pensaria a priori, que habita a arte contemporânea. Entidade complexa, sinónimo de tudo o que temos falado e paradoxalmente também de um mercado e de um índice de valor paralelo ao de quaisquer bens de consumo. Deste modo estamos a falar, de um contexto bastante particular, de uma actividade que elege uma matéria-prima, qualificável pelo seu valor simbólico e conceptual; um bem de consumo de carácter excepcional em raridade, que deveria adquirir um valor pecuniário em conformidade com a legitimidade da “brand” do artista e o índice a que corresponder a sua procura/aceitação no mercado.
Sendo assim, discursos românticos da arte enquanto uma aspiração a uma ascese, quase caem por terra. A ideia de maravilhoso é algo contraditória que se joga nos mais variados tabuleiros. Pode ser aquilo que o espectador reconhece do gesto, da “marca primordial” que o artista fez, mas também pode manifestar-se sob inúmeros outros pretextos.
É de certa forma estranho que a manutenção da actividade artística, alheada nos seus trâmites de produção, de muitos dos deveres e obrigações da moralidade daquilo que se convencionou chamar a “uma vida em sociedade”, privilegiando em vez disso, “vivencias por intermédio de éticas particulares”, seja patrocinada e mantida pelo meio que os mais ingénuos e os mais desafogados se permitem apontar como pernicioso - o capital. Por outro lado, se é o capital e toda a sua arquitectura, que permite que um tipo maravilhoso[2] se manifeste com maior periodicidade, também é ele um dos vilões, apontado como o culpado por um mundo em falta de espanto.
Apesar disso, para vislumbrar o maravilhoso, podemos unicamente, permanecer no ateliê. O maravilhoso também se evidência naquilo que está por ser. Naquilo que nunca vai ser e que por essa razão dá respaldo a tudo o que se efectiva. Quando consideramos o lado universal das coisas estamos a ter em conta uma “medida imponderável” onde um raciocínio binário (bom/mau; vivo/morto; real/ virtual;) ganha a importância relativa de tudo aquilo que se possa regatear. Não falamos de um campo onde as repercussões dos nossos actos tenham um desfecho directo e vinculativo, uma vez, que chegados a este ponto, estarmos a planar na estratosfera da verdadeira abstracção do pensamento. Desse modo quando enunciamos um nome e ele ganha a representatividade de tudo o que pode ser, estamos a considerar, em relação a esse substantivo, todos os significados que conseguimos compreender, todos aqueles que não sabemos, e também, tudo aquilo que por força do nosso contexto cultural não vamos compreender como o faria outro indivíduo num diferente ponto do globo. Não obstante tudo isso, quando agimos e produzimos um novo trabalho estamos a agregar ao “repertório” desse substantivo, mais uma imagem que lhe faz referência, estamos a abrir mais uma via naquilo que “essa coisa” também pode ser. É dentro destes meandros da percepção e do significado que muitas vezes se escondem acontecimentos que podem invocar o maravilhoso. Acontecimentos despoletados, por novos encontros desses signos com aspectos que lhes sejam particulares, e que possam conferir novas interpretações polissémicas.
Fora do ateliê também existe um terreno para o maravilhoso. Um território tão vasto que começa dentro de nós e se espalha para todo o mundo, provocando avistamentos e encontros com o maravilhoso nos mais curiosos lugares. Mas como pode o dentro de nós fazer parte de fora do ateliê?
O ateliê afigura-se para além da sua dimensão física como um espaço para onde o artista reserva um determinado tipo de pensamento. A natureza desse raciocínio, tira partido de várias competências da sua inteligência, exigindo neste contexto, um sentido de desapego. Uma necessidade de passarmos para segundo plano a nossa “individualidade”, e colocarmo-nos ao serviço daquilo que estamos a fazer. Nesse sentido quando o maravilhoso se manifesta no ateliê independentemente de como isso ocorra, será sempre uma ocorrência proporcionada pelas circunstâncias ocasionais do favorecimento de um modus vivendi[3] entre a praxis que o artista desenvolve e uma circunstância particular que o “ateliê” despoletou. Embora a prática seja um aspecto da vida de um artista que nunca o abandona o ateliê é o sítio onde ela pode ganhar, pelas razões mencionadas, a sua maior expressão.
O maravilhoso ou a manifestação do real no contexto da nossa vida diária é algo que pode ocorrer num espectro bastante alargado. Não tem necessariamente uma conotação ética. Não existe um julgamento ou um juízo a tirar daí. A única coisa que podemos fazer é assinalar a sua ocorrência, e reenquadrar, nas possibilidades e no imponderável que trouxe para à frente, a necessidade de compreender a nova realidade que gerou. No caso do artista com a sua obra, estes acontecimentos apontam caminho. Um caminho que é um consequência do trabalho, do fazer, que se afasta gradualmente dos desígnios das tendências do mercado e daquilo que são os ditames, que as suas lógicas possam prescrever.
Na vida fora do ateliê estas manifestações ocorrem de forma muito mais dispersa podendo manifestar-se em acontecimentos que a priori, não vamos admitir como benéficos na nossa vida. Alvar Aalto a propósito do seu métier diz-nos:
“Existe uma regra na arquitectura: construir com naturalidade. Não faças nada pomposo ou exuberante, não construas o que não é necessário. Tudo o que é supérfluo com o tempo torna-se feio.”[4]
O maravilhoso é um dos orquestradores deste acerto, desta conta que a manifestação dos nossos actos e a interpretação do que podemos fazer, a partir das elações do que nos acontece, providencia. Fora do âmbito desta ética, (que pode ser cultivada em redor de uma procura de simplicidade) existe pouco que possamos fazer para ter a segurança de que algo desta ordem se possa manifestar.
É extremamente difícil elencar os predicados e os defeitos de algo que parece acompanhar-nos no decurso da nossa vida e que na sua maior parte não se manifesta de forma cabal e evidente.
No pensamento contemporâneo existem incontáveis exemplos de relatos sobre este tipo de manifestações do real. Foquemos a nossa atenção em três casos particulares:
A.
Para Agamben o Irreparável é:
“… É o facto de as coisas serem como são, deste ou daquele modo, entregues sem remédio à sua maneira de ser. Irreparáveis são os estados das coisas, sejam elas como forem: tristes ou alegres, cruéis ou felizes. Como és, como é o mundo – é isto o Irreparável.”[5]
O filósofo argumenta sobre a perenidade do mundo no que diz respeito à sua condição ou natureza de ser-assim, onde a doutrina da unidade dos contrários de Heraclito[6] se esbate e funde no real revelando uma singularidade que parece maior do que qualquer idiossincrasia humana. De tal forma, que todas acabam por verter para a plenitude/vazio de tudo o que simplesmente existe.
“O Irreparável não é nem uma essência nem uma existência, nem uma substância nem uma qualidade, nem um possível nem um necessário. Não é propriamente uma modalidade de ser, mas é o ser que se dá desde logo na modalidade, é as suas modalidades. Não é assim, mas é o seu assim.”[7]
Conhecer o conceito de Irreparável de Agamben é importante para tentarmos aproximarmo-nos do sentido da natureza do maravilhoso. Quando falamos da natureza do que é o maravilhoso e tentamos compreender alguma coisa da sua ontologia, estamos a apontar para um tipo de acontecimento fugaz, que apesar dessa natureza fugidia, não perdeu em nada, nenhuma das características que pode partilhar com o conceito de Agamben. De facto, no seu cerne, a evidência do maravilhoso é um evento, que comunga do sentido de perenidade que assinalámos e que é próprio daquilo que se caracteriza por ser-assim.
As implicações do ser-assim no ateliê vão ser bastante diversas daquelas decorrentes de uma análise num espectro mais alargado do resto da vida de um indivíduo.
Esta ideia de ser-assim, de uma ocorrência inevitável e inesperada, que decorre da existência de um determinado objecto é importante para a ideia de prática. No sentido em que quando dizemos que é necessário desapego (na prática) estarmos a fazer jus a um argumento que valoriza a ideia desse conceito em particular. A ideia do desapego como um veículo para a prática artística vem desta necessidade de tentar fazer sem julgamento ou finalidade imediata, tentando desviar as nossas idiossincrasias, de modo que, aquilo que estamos a fazer, possa ser-assim, o mais próximo do que deve, aspirando a que se cumpra enquanto tal. Quando esse acontecimento se verifica na maioria das vezes estamos na presença de uma obra despoletada pelo maravilhoso.
Na cultura chinesa a palavra Kung-fu, para além de estar ligada à sua acessão mais comum (artes marciais) no ocidente, pode também, ser aplicada a todo o processo que necessite de paciência, energia e tempo para ser levado a bom porto. Na sua verdadeira acessão refere-se a toda a disciplina ou prática adquirida por meio da abnegação e do trabalho árduo[8]. O ateliê nesse sentido é um lugar de Kung-fu, onde o maravilhoso está em potência sempre pronto a poder verificar-se. Esta forma de maravilhoso, particular ao ateliê é em certa medida o seu modo de ser-assim. Se o entendermos com um instrumento ao serviço da prática, e não só como o espaço onde esta se “pratica”, podemos admitir o ateliê como o local, onde um certo tipo de acção se reserva e se enquadra no contexto da vida de um artista. Desse modo, ir ao ateliê é mais do que ir para o local de trabalho; é também, permitir que uma atenção e uma intenção na consciência do artista se posicionem por um diapasão privilegiado com o intento de se debruçarem sobre o seu trabalho e sobre a sua prática. A condição de ser-assim no ateliê, está desta forma ligada a uma conduta, que por sua vez condiciona e molda a prática, para caminhos mais próximos do seu verdadeiro devir. É graças à repetição de uma metodologia que o acto “do fazer” se pode libertar de mitos e condicionalismos e se pode aproximar daquilo que pode ser.
B.
Dentro da arquitectura heidegeriana o conceito de dasein ocupa um lugar importante sobre o qual nos podemos apoiar alguns aspectos da nossa ideia de maravilhoso. De uma maneira geral, o ser-aí é uma construção que dá respaldo a uma ideia de ecossistema[9] onde o poder-ser ganha a projecção que necessitamos para abordarmos o nosso foco de interesse. O conceito de Heiddeger traz consigo a ideia de um ser-no-mundo, focado numa perspectiva do que pode a condição humana. Esta ideia de que existe um ecossistema onde o sentido-de-si de cada um, pode e é afectado pela experiencia-em-si, do outro, é importante na medida, em que lança terreno fértil, para que ignições, como o maravilhoso, possam acontecer.
Por outro lado, coloca questões pertinentes em relação à própria prática artística. Problemas sob os quais o autor também se debruçou, no que concerne à natureza da arte e das suas tautologias. Importante para a nossa argumentação é o seu conceito de ser-obra, que advoga como sinónimo de – levantar um mundo.
“Ser-obra significa: levantar um mundo. Mas o que é isso – um mundo? […] O mundo não é o mero agregado de coisas, contáveis ou incontáveis, conhecidas ou desconhecidas, que estão perante. Mas o mundo não é também um enquadramento apenas imaginado, representado para além do somatório do que está perante. O mundo faz mundo e é sendo mais que aquilo que é apreensível e perceptível no [meio do] qual nos julgamos “em casa”. O mundo nunca é um objecto que esteja ante nós e que possa ser intuído. O mundo é aquilo que é sempre não-objectivo, de que dependemos enquanto as vias do nascimento e da morte, da bênção e da maldição nos mantiverem enlevados no ser.”[10]
Voltando à ideia que iniciou este ponto, importa agora, debruçarmo-nos sobre o dasein, quanto à sua etimologia; composto por “da”(aí) e “sein” (ser) que à letra se traduz ser-aí. Se olharmos para o “ser” de ser-obra, compreendemos como essa construção consegue explorar pela linguagem algo bastante mais vasto do que o espectro do nosso entendimento, pode de forma desarmada, compreender. O ser-obra configura-se como uma das construções mais universais, no que diz respeito, à nomeação do que pode ser uma obra de arte, uma vez, que sem abdicar de todas as características particulares ao ente da obra, agrega todo o potencial que o facto de estar-a-ser lhe confere.
Ora o maravilhoso de que falamos, para lá de se poder assemelhar ao curto-circuito que pode tornar um ser em ente, é também, o instante em que o ser-obra troca o potencial do que pôde ser, porque não se cumpriu, pelo o potencial daquilo que pode (a partir dali), enquanto tudo o que é. O maravilhoso é assim uma manifestação do mundo que indicia uma transformação.
C.
“(…) o conhecimento é uma função do imaginário , uma incessante idealização”[11]
Importa por último abordarmos sucintamente uma das ordens psicoanalíticas apontadas por Jacques Lacan – o real. Pelo Real nestes termos, entende-se aquilo que não sai do lugar; aquilo que não é uma coisa, nem um objecto no mundo, nem um corpo, nem mesmo uma “realidade”; o real é aquilo que suporta a nossa realidade social e paradoxalmente é tambem a fonte dos entraves de todas as suas contigências. Segundo a enciclopédia de Psicanálise Lacantina “enquanto um ser-em-si, o real transcende o reino das aparências e das imagens”[12] continua, dizendo, “é discrito como concreto – é a materialidade que existe antes da simbolização. O real não existe, enquanto experiencia é criado como um produto do pensamento e da linguagem e o real precede a linguagem. O real é aquilo que resiste permanentemente à simbolização.”
Depois de sublinarmos este termo complexo, importa enquadra-lo no nosso pensamento.
Previamente abordámos conceitos como o irreparável e dasein que em alguma parte se assemelham e compartilham com o real alguns das seus predicados. A pertinência de elencar três conceitos desta ordem, vem da necessidade de pela sua triangulação tentar compreender o que pode ser o maravilhoso em face do que estes três conceitos apontam. Desse modo podemos entender o irreparável, como algo que vamos identificar, presente na natureza do maravilhoso. Falaremos de seguida, do dasein como o seu ecosistema e do real enquanto a sua geografia.
Por maravilhoso entendemos o momento particular em que por intermédio de um sentido de ser, aquilo que existia, unicamente no plano do Real, e que, pode dizer respeito à prática do artista, inicia o processo de increver-se de forma irreparável, numa linguagem e na prática de do seu contexto de criação. Este processo não tem de levar necessariamente à execução de uma obra, muitas vezes, vai ser apenas um afloramento de uma intenção frutuita, alguma coisa que ao acontecer, vai viabilizar a espontaneadade e a fluidez do pensamento criativo, permitindo que o fluxo desse racional possa actualizar-se de modo a chegar onde deve.
A circunstância desta ocorrência ganha uma operacionalidade, mediante uma permissão tácita e gradual, no contexto da vida e da prática de cada um. Aquilo que num primeiro momento pode ser vivido com “verve” e algum deslumbramento, ganha com o passar do tempo uma jurisprudência mais certeira nos seus interesses e uma fruição mais calma, própria da compreensão, daquilo que pode trazer para a vida de quem faz – um momentâneo desapego do mundo.
Neste contexto, o atelier desempenha um papel importante enquanto “o veículo” que permite saber, de um modo mais sistematizado, alguma coisa desta actividade, além da sua inerente natureza irreparavel. É quando o desejo e a razão entram nesta esfera que surgem entraves, a este processo, que vive da aceitação e da certeza de que nós (enquanto criadores) devemos ser um medium não a origem.
Deste modo, pensemos como surge esta ideia do Dasein enquanto ecossistema para esta economia da prática. Se pensarmos na ideia clássica de ecossistema enquadrada na Ecologia vamos compreender que é um mecanismo, que se processa da relação dos efeitos causados pelos organismos em um ecossistema, e a decorrente evolução das populações que os comportam (factores bioticos); e tambem, das influências que esses organismos possam sofrer desse biotopo em particular (factores abioticos). Na argumentação de Heiddeger, quando este fala da obra de arte e da sua condição de ser-obra, caracteriza-a como uma luta entre o mundo e a terra. Entenda-se como “mundo” um campo alargado do “ser” e a terra como :
“[…] a terra faz com que qualquer tentativa de intromissão em si se despedace contra ela mesma. Leva a que qualquer importunidade meramente calculadora se transforme numa destruição. Esta bem pode estar investida da aparência de um domínio e de trazer consigo o progresso na forma da objectivação técnico-científica da natureza, mas este domínio não é senão uma impotência da vontade. A terra só aparece abertamente clareada, enquanto terra, onde é guardada e reguardada como aquilo que é essencialmente insusceptível de ser descerrado, que recua perante qualquer descerramento, o que significa que se mantem constantemente encerrada. Todas as coisas da terra, e ela mesma no seu todo se derramam numa unissonância recíproca.”
A razão para escolhermos o dasein, como o elemento a ser tido como a metáfora para “ecossistema”, e não a ideia de ser-obra, prende-se com o facto, de no primeiro termo, estarmos a considerar uma circunstância enquadrada dentro do espectro da experiência humana. O ser-ai reporta sempre ao humano e são aqueles com que partilhamos a nossa condição de humanidade, aqueles que podem ter acesso ao maravilhoso. Apropriando-nos dos termos da ecologia, tentemos pois, encontrar aspectos “bioticos e abioticos” dentro do cenário de afectações que aqui nos interessa. Ou seja, onde estão e como se dão os intervenientes no biotopo em causa?... e qual é a natureza das trocas que se propocionam?
Sendo o atelier, o espaço de eleição para a normalização da prática, e consequentemente, o local, onde a ocorrência, com maior periodicidade, do maravilhoso, pode acontecer, importa sublinhar, que sem o artista, o atelier é unicamente um edificado. É o artista e a sua prática que tornam esse espaço, (um lugar comum à partida) numa geografia particular. Ora desse ponto podemos também identificar uma analogia bem clara entre o atelier e o conceito de ecossistema. No entanto, antes dessa comparação ser feita , existe outra mais importante para o artista, e que vai de encontro ao conceito de dasein e também de ser-obra que assinalámos anteriormente.
Olhando para o artista como um individuo, parte mundo e parte terra[13], capaz e responsável pelas suas circunstâncias, e pelas suas contingências, podemos compreender, como é nesse contexto, que se desenrolam as trocas de energia, que dizem respeito ao acontecimento que nos tem tomado a atenção. Dessa forma, o maravilhoso acontece dos movimentos tectónicos decorrentes desse confronto entre aquilo que podemos fazer e aquilo em que o que fazemos, se torna. Nesse sentido, o momento do maravilhoso, é aquele, onde uma parte disso se joga.
É da jurisprudência do maravilhoso e do consumar consecutivo de ignições consequentes e materializadoras de trabalho que deixamos de falar de um plano de afectação próximo de um instinto ou de uma percepção supersticiosa e passamos a falar do inventário daquilo que está feito. Da parte de mundo que é, em cada artista, e da parte de terra, que também o qualifica, surge alguma coisa que é mundo e terra segundo a sua própria ontologia. Uma ontologia criada a apartir de mecanismos autotrofos decorrentes do real, que se o artista souber interpretar de uma forma compassiva, poderão originar objectos singulares e universais.
Sendo assim, o conceito de dasein configura-se num local onde um fluxo autotrofo[14], será composto pelas relações entre o “acesso” ao “real” de um indivíduo e as potencialidades do que pode, ser e fazer, no espectro da sua prática. Já aquilo que vamos chamar de “fatores bioticos”, será nesse sentido, o numero de ocorrências do maravilhoso que origina a produção de sentido de uma determinada prática criativa. Os factores abioticos, por sua vez, neste cenário, serão aqueles que dizem respeito à natureza do indivíduo que explora esse campo de trabalho e tudo aquilo que ele é enquanto um ser-no-mundo.
Reclamar no real a geografia do maravilhoso é apontar para as coordenadas da sua origem. Tal como nos é descrito por Lacan, enquanto um ser-em-si, o real transcende o reino das imagens e das aparências[15]. Consideremo-lo então, algo tão comum, quanto a importância do sol para um ecossistema. É graças à capacidade de alguns seres vivos possuirem habilidades autotrofas que a luz do sol pode ser absorvida por eles, originando um círculo virtuoso, que vai permitir o perpetuar da viabilidade dessa comunidade. De algum modo, é a “relação criativa” de um indivíduo, com a sua condição de ser-no-mundo, pautada por afectações e reações, que vai provocar uma resposta do “real”, e configurar o local, onde, ainda longe da linguagem, se alimenta o que mais tarde pode ganhar a forma de um fluxo de trabalho. Sendo o artista um medium, desse modo, das manifestações que vão resultar do desapego que cultiva, por aquilo que deixa materializar no mundo.
[1] Mas que amiúde pode perfeitamente ser transposto para um vasto leque de situações e contextos.
[2] Pela produção artistica que permite, e que de outra forma não seria possivel. Existe no mundo de hoje uma ligação umbilical entre o acesso aos meios de produção e a produção artistica. Desse modo, o nosso encontro com o maravilhoso, nestes termos com uma indole mais estetica, está largamente condicionado com a oportunidade que os artistas tenham para levar a cabo o seu trabalho.
[3] Existe na vida de todos aqueles que cultivam qualquer tipo de pensamento criativo sempre esta dicotomia entre aquilo que fazemos no atelie (ou estudio ou palco, etc.) e o resto das nossas vidas. Embora a ideia de uma ideia nunca nos abandone, existe sempre uma reserva no nosso quotidiano quando por alguma razão, alguma coisa nos provoca espanto. Essa manifestação do maravilhoso, diária e corriqueira, é uma das forças motrizes que nos empurra para o atelier e nos faz querer saber mais sobre aquilo que fazemos. A única verdadeira maneira de isso acontecer , está no exercicio persistente do fazer. É pelo fazer que o artista descobre o que pode ser o seu contributo.
[4] Tradução livre do inglês.
[5] Escrever ref bib
[6] “A doutrina da unidade dos contrários é talvez o aspecto mais original do pensamento filosófico de Heráclito. A lei secreta do mundo reside na relação de interdependência entre dois conceitos opostos, em luta permanente; mas, ao mesmo tempo, um não pode existir sem o outro. Nada existiria se não existisse, ao mesmo tempo, o seu oposto. Assim, por exemplo, uma subida pode ser pensada como uma descida por quem está na parte de cima. Entre os contrários se cria uma espécie de luta constitutiva do logos indiviso.[…] A partir de seus pressupostos - panta rei e a guerra entre os contrários -, Heráclito definiu uma arché, um princípio que está em todas as coisas desde a sua origem: o fogo. Para ele, "todas as coisas são uma troca do fogo, e o fogo, uma troca de todas as coisas, assim como o ouro é uma troca de todas as mercadorias e todas as mercadorias são uma troca do ouro"; ou seja, todas as coisas transformam-se em fogo, e o fogo transforma-se em todas as coisas.” in Wikipedia https://pt.wikipedia.org/wiki/Her%C3%A1clito, 3 de janeiro de 2019.
[7] Idem , nota rodape 5
[8] Wikipedia em https://en.wikipedia.org/wiki/Kung_fu_(term), 3-01-2019
[9] Por ecossistema, normalmente, entendemos… “(Gregos: oikos {οἶκος}, casa + sistema {σύστημα}, sistema) define o conjunto formado por comunidades bióticas que habitam e interagem em determinada região e pelos fatores abióticos que exercem sobre essas comunidades” in wikipedia, 4 de janeiro de 2019. A partir deste conceito vamos tentar tirar ilações uteis para a nossa argumentação.
A ideia de considerar o conceito de dasein enquanto o ecossistema, onde o maravilhoso pode acontecer, vem apoiada pelo enorme sentido dialéctico, que toda a sua construção oferece. De facto, grande parte do que a obra pode-ser joga-se na fluência que o dasein presente no artista tem enquanto ser-no-mundo.
[10] Ref bib.
[11] Lacan semarios completar
[12] Ref bib idem cima
[13] Referente aos termos de heiddeger.
[14] Ou produtores primarios.
[15] No subject ref bib