Lisboa 27.02.20
Por sua própria admissão, desde 2016 o ponto de partida do trabalho de Pedro Calhau é a junção de elementos de duas famílias diferentes. Isto serve ao artista para visualizar as possibilidades do trabalho; para criar séries como se fossem filhos com o ADN de ambas as partes, parecidos com cada um e ao mesmo tempo criando a sua própria identidade e traçando o seu próprio rumo. O artista descreve este processo também como uma procura da criação duma “tradição de diversidade, encarando a prática artística como uma meta-narrativa que é formada pela proliferação sequencial de novas propostas e novos problemas”. Assim, depois de quatro anos desta prática, Pedro Calhau propôs-se levar esta meta-narrativa a outro nível, torna-la ainda mais meta, nomeadamente trazendo para a equação o olhar exterior dum curador.
Juntando o olhar deste último e do artista, a exposição torna-se, de certa forma, o bebé destes dois olhares, o centro do diagrama Venn que já serve de modelo metodológico ao artista. Além disto, como é o caso com o trabalho de Calhau, as exposições seriam também uma série, cada exposição com um curador diferente.
A exposição Cassiopeia é o primeiro exemplar desta séria, a exposição 0, o protótipo, o ensaio.
Duma pré-seleção de trabalhos feita pelo artista, seria talhada uma outra seleção feita pelo curador.
O que inicialmente me surpreendeu neste projeto do Pedro foi a coragem de se expor a estes vários olhares exteriores, estas várias perspectivas de dissecação. No entanto, olhando com mais atenção para os trabalhos do Pedro, o que me pareceu vislumbrar neles foi um certo medo, um medo do vazio, da indiferença e da violência da natureza. Um medo muito humano, no fundo.
As exposição ainda não está montada, portanto é impossível de saber exatamente quais são os trabalhos que serão incluídos, mas o meu interesse foi aguçado sobretudo por quatro séries: na série Catwalk (2014) vestidos femininos “dançam” em paisagens; nas séries Sunrise Revival (2016) e 12 Montanhas (2016) Calhau introduz artefatos ancestrais em vários tipos de paisagens; e em Nous (2015-2017) o pintor “retratou” paisagens celestiais retiradas do site da NASA.
O que me atirou nestas quatro séries foi que, em quase todos os casos, havia uma combinação de elementos humanos/culturais e naturais/selvagens. É verdade que, estritamente, isto não se aplica à série Nous, mas esta sobreposição pareceu-me latente, no sentido dos Retratos (porque é assim que se chamam as pinturas individuais) representarem constelações, que (para já) só existem da nossa perspetiva humana.
Foi assim que surgiu o nome Cassiopeia, uma constelação conhecida, uma constelação antiga e facilmente reconhecível, com a sua forma em W. W, como “whatever”. “Cassiopeia ou whatever”; a ambição do Pedro para o conhecimento e a categorização combinada com a minha atitude leviana.
O nome da constelação que chamamos de Cassiopeia tem origem na figura da mitologia grega do mesmo nome que era a rainha da Etiópia, mãe da Andrómeda, e mulher de Cefeu. A história conta que era vaidosa e arrogante e que terá declarado a si e à filha mais belas do que as nereidas, ofensa pela qual foi punida pelo Poseidon.
Esta vaidade lembra-me o trabalho de Calhau - e sobretudo as séries de obras escolhidas para esta exposição -, no qual se encaixa esta necessidade muito humana de nos projetarmos em tudo, de nos contarmos histórias sobre nós próprios para nos percebermos melhor e validar a nossa existência.
Mas a outra face desta vaidade é a vulnerabilidade, e isto também me confronta no trabalho de Calhau. Em Catwalk, os vestidos, vazios, parecem ter sido abandonados aos elementos e enternece a sua delicadeza contra a solidez das paisagens; eles próprios parecem querer se tornar árvore, montanha, vento. Em Sunrise Revival e 12 Montanhas os artefatos têm elementos que são reconhecivelmente biomórficos, mas também apresentam uma certa estranheza cómica, parecem estar fora do lugar, como convidados tímidos a uma festa onde não conhecem ninguém. E os astros nos retratos da série Nous são isso mesmo, astros. Espaço infinito e incognoscível, inumeráveis conjuntos de massas variáveis, alguns dos quais já não existem. Projetamos neles formas, e através deles projetamos em nós próprios caraterísticas e expetativas. Queremos nos ligar a eles, e certamente somos ligados, mas pergunto porque é que, quando confrontados com tanta abertura, e portanto possibilidade, sentimos a necessidade de estruturar, de categorizar, de limitar.
Torna-se claro, portanto, que no trabalho de Calhau há esta tensão entre cultura e selvageria. Há um desejo instintivo de aceitar o caos e a força da última, e a necessidade estruturante e protetora de manter uma ligação à primeira. A liberdade reside algures no horizonte, como no Wild West dos filmes americanos, e talvez, de alguma forma, será sempre uma miragem.
Mudando de perspectiva, levantando o olhar do trabalho do Pedro Calhau e olhando para o futuro, será interessante ver como o processo meta-meta desta série de exposições irá afetar o processo já meta da criação do Pedro, e como estas várias tensões se irão desenvolver e resolver.
Eva Oddo
Por sua própria admissão, desde 2016 o ponto de partida do trabalho de Pedro Calhau é a junção de elementos de duas famílias diferentes. Isto serve ao artista para visualizar as possibilidades do trabalho; para criar séries como se fossem filhos com o ADN de ambas as partes, parecidos com cada um e ao mesmo tempo criando a sua própria identidade e traçando o seu próprio rumo. O artista descreve este processo também como uma procura da criação duma “tradição de diversidade, encarando a prática artística como uma meta-narrativa que é formada pela proliferação sequencial de novas propostas e novos problemas”. Assim, depois de quatro anos desta prática, Pedro Calhau propôs-se levar esta meta-narrativa a outro nível, torna-la ainda mais meta, nomeadamente trazendo para a equação o olhar exterior dum curador.
Juntando o olhar deste último e do artista, a exposição torna-se, de certa forma, o bebé destes dois olhares, o centro do diagrama Venn que já serve de modelo metodológico ao artista. Além disto, como é o caso com o trabalho de Calhau, as exposições seriam também uma série, cada exposição com um curador diferente.
A exposição Cassiopeia é o primeiro exemplar desta séria, a exposição 0, o protótipo, o ensaio.
Duma pré-seleção de trabalhos feita pelo artista, seria talhada uma outra seleção feita pelo curador.
O que inicialmente me surpreendeu neste projeto do Pedro foi a coragem de se expor a estes vários olhares exteriores, estas várias perspectivas de dissecação. No entanto, olhando com mais atenção para os trabalhos do Pedro, o que me pareceu vislumbrar neles foi um certo medo, um medo do vazio, da indiferença e da violência da natureza. Um medo muito humano, no fundo.
As exposição ainda não está montada, portanto é impossível de saber exatamente quais são os trabalhos que serão incluídos, mas o meu interesse foi aguçado sobretudo por quatro séries: na série Catwalk (2014) vestidos femininos “dançam” em paisagens; nas séries Sunrise Revival (2016) e 12 Montanhas (2016) Calhau introduz artefatos ancestrais em vários tipos de paisagens; e em Nous (2015-2017) o pintor “retratou” paisagens celestiais retiradas do site da NASA.
O que me atirou nestas quatro séries foi que, em quase todos os casos, havia uma combinação de elementos humanos/culturais e naturais/selvagens. É verdade que, estritamente, isto não se aplica à série Nous, mas esta sobreposição pareceu-me latente, no sentido dos Retratos (porque é assim que se chamam as pinturas individuais) representarem constelações, que (para já) só existem da nossa perspetiva humana.
Foi assim que surgiu o nome Cassiopeia, uma constelação conhecida, uma constelação antiga e facilmente reconhecível, com a sua forma em W. W, como “whatever”. “Cassiopeia ou whatever”; a ambição do Pedro para o conhecimento e a categorização combinada com a minha atitude leviana.
O nome da constelação que chamamos de Cassiopeia tem origem na figura da mitologia grega do mesmo nome que era a rainha da Etiópia, mãe da Andrómeda, e mulher de Cefeu. A história conta que era vaidosa e arrogante e que terá declarado a si e à filha mais belas do que as nereidas, ofensa pela qual foi punida pelo Poseidon.
Esta vaidade lembra-me o trabalho de Calhau - e sobretudo as séries de obras escolhidas para esta exposição -, no qual se encaixa esta necessidade muito humana de nos projetarmos em tudo, de nos contarmos histórias sobre nós próprios para nos percebermos melhor e validar a nossa existência.
Mas a outra face desta vaidade é a vulnerabilidade, e isto também me confronta no trabalho de Calhau. Em Catwalk, os vestidos, vazios, parecem ter sido abandonados aos elementos e enternece a sua delicadeza contra a solidez das paisagens; eles próprios parecem querer se tornar árvore, montanha, vento. Em Sunrise Revival e 12 Montanhas os artefatos têm elementos que são reconhecivelmente biomórficos, mas também apresentam uma certa estranheza cómica, parecem estar fora do lugar, como convidados tímidos a uma festa onde não conhecem ninguém. E os astros nos retratos da série Nous são isso mesmo, astros. Espaço infinito e incognoscível, inumeráveis conjuntos de massas variáveis, alguns dos quais já não existem. Projetamos neles formas, e através deles projetamos em nós próprios caraterísticas e expetativas. Queremos nos ligar a eles, e certamente somos ligados, mas pergunto porque é que, quando confrontados com tanta abertura, e portanto possibilidade, sentimos a necessidade de estruturar, de categorizar, de limitar.
Torna-se claro, portanto, que no trabalho de Calhau há esta tensão entre cultura e selvageria. Há um desejo instintivo de aceitar o caos e a força da última, e a necessidade estruturante e protetora de manter uma ligação à primeira. A liberdade reside algures no horizonte, como no Wild West dos filmes americanos, e talvez, de alguma forma, será sempre uma miragem.
Mudando de perspectiva, levantando o olhar do trabalho do Pedro Calhau e olhando para o futuro, será interessante ver como o processo meta-meta desta série de exposições irá afetar o processo já meta da criação do Pedro, e como estas várias tensões se irão desenvolver e resolver.
Eva Oddo