LOQUITUR LATINE
Para gregos e romanos, bárbaros eram quem não falava a sua língua e não partilhava a sua cultura. No caso dos romanos, os bárbaros podiam ser gregos e no dos gregos podiam ser romanos. Nestes tempos que vivemos julgo ser pertinente perguntar onde foi parar esta noção de que a língua nos define enquanto povo. O que é um povo? O que é civilização?
A ideia de bárbaro pretendia traçar uma linha que demarcava de uma forma peremptória a diferença entre nós e eles. O mundo era assim uma conjuntura cognoscível, catalogável sem que com isso perdesse identidade ou um devir para o futuro. E o que tem haver isto com uma exposição de pintura? Aparentemente nada, no entanto vejo na arte que se faz hoje uma predominância de um lado pessoal que muitas vezes não se sustenta na ontologia das obras e necessita de farrapos de historias, tendências e apetites quase supersticiosos para legitimar determinado objecto artístico. As vezes mais parece moda. Este lado pessoal que certamente advém da materialização da persona do artista durante o século XIX e no século XX é vista neste texto com alguma ambiguidade. Se por um lado é mais do que legitimo que determinado percurso artístico seja reconhecido pelo seu contributo para um património cultural, também o protagonismo que pode dai vir não me parece benéfico se ofuscar a sua verdadeira razão de ser, o trabalho. É o trabalho que legitima e dá sentido à tradição que têm de ser criada para que o seu contributo possa ser considerado único e particular. Tradição que é mais que um estilo, assumindo-se nos melhores exemplos como uma ética do fazer. Tratasse em suma de cunhar uma língua. E aceitar e viver a sua evolução desde os grunhidos mais truculentos até uma tradição oral e por fim nos casos mais auspiciosos, escrita. Loquitur latine?
É pois uma pergunta pertinente pois convoca para a discussão uma questão fundamental que se prende com até que ponto a franja da população que vive alheada do fenómeno da arte contemporânea se sente apta a conviver com essa língua de Duchamp, Picasso, Warhol e Hirst. Até que ponto tem de existir um conhecimento gramatical, semântico ou sintáctico de uma circunstancia que para todos os efeitos é composta de diferentes dialectos, únicos e insubstituíveis. Será mesmo necessário conhecer o senhor Greenberg, a senhora Krauss ou outro qualquer vulto para nos aproximarmos de uma obra de arte e nos relacionarmos com ela? Falando da minha experiência enquanto espectador e frequentador de museus e exposições, não. Tirando partido do que Deleuze dizia no seu abecedário e também da minha experiência, o encontro com uma obra de arte não precisa de intermediários. Lembro-me de vários encontros que tive que me marcaram porque me revelaram alguma coisa de mim que não pode ser traduzido em palavras mas que reconheci nessas pinturas, sobretudo pinturas. Para lá de nomes o que me interessa enquanto expectador e consumidor de arte contemporânea é a coisa material.
É relação daquele corpo com o meu. Desse ponto de vista somos todos bichos, ainda que bichos intelectuais. E por conseguinte cada um que tenha tesão pelo que tiver, mediante os seus apetites, os seus gostos, as suas necessidades. É assim que eu me deixo arredar na relação com um Velasquez, um Twombly ou alguma coisa do Schutte. É uma bebedeira de um niilismo refinado, fora dos radares mundanos sempre cheios de nada. É um vazio precioso porque fala de nós apesar de não nos dizer totalmente respeito, fazendo desses objectos, veículos privilegiados para nos irmos conhecendo aos poucos com alguma elegância.
Outra pergunta que pode ser extraída deste contexto é a de saber se por não compreendermos a “língua” da arte contemporânea seremos bárbaros? A relação do público em geral com a arte contemporânea é particular e difícil. Difícil porque mesmo que inconscientemente persente que falta ali alguma coisa. E de facto falta. Quanto a mim falta o lado moral. Durante seculos a produção artística desempenhou um papel particular na manutenção de uma certa moralidade que se prendia com os assuntos retratados muitas vezes ao serviço dos patronos das encomendas. Era uma forma de legitimar o poder e secularizar uma tradição de dai advinha. Ora o advento do modernismo veio em parte mudar isso e o pós-modernismo, acabar com essa possibilidade.
Mesmo que o coleccionismo de arte seja em si um factor de prestigio, uma demonstração de um interesse por algo para alem da redundância dos dias. A arte que se produz hoje é muito mais virada para uma coisa ética, onde o fazedor houve (ou deveria ouvir ) um devir que diz respeito à ontologia de um modo de fazer, em detrimento de modas, tendências ou apetites do mercado.
É justamente aqui que julgo que o publico se perde, na medida em que vai à procura de uma narrativa, um sentido que na maioria das vezes não tem razão de ser. O sentido de uma peça reside no facto de ela ser-em-si. Admitir que um objecto não utilitário tem um direito a existir unicamente por questões desta ordem é difícil para o expectador comum, na medida em que está habituado a associar os objectos do seu dia-a-dia a aspectos bastante pragmáticos da sua vida. E esse ponto faz dos objectos ou peças de arte, objectos bárbaros (ou deverá fazer). É justamente esta estranheza que me importa enquanto espectador por ser por essa via que se abre caminho para a curiosidade, a tolerância pela diferença e a resistência à cristalização que certamente vai ocorrer se não estivermos abertos à possibilidade do novo e do diferente.
Oxalá esta ocasião produza esse efeito.
A ideia de bárbaro pretendia traçar uma linha que demarcava de uma forma peremptória a diferença entre nós e eles. O mundo era assim uma conjuntura cognoscível, catalogável sem que com isso perdesse identidade ou um devir para o futuro. E o que tem haver isto com uma exposição de pintura? Aparentemente nada, no entanto vejo na arte que se faz hoje uma predominância de um lado pessoal que muitas vezes não se sustenta na ontologia das obras e necessita de farrapos de historias, tendências e apetites quase supersticiosos para legitimar determinado objecto artístico. As vezes mais parece moda. Este lado pessoal que certamente advém da materialização da persona do artista durante o século XIX e no século XX é vista neste texto com alguma ambiguidade. Se por um lado é mais do que legitimo que determinado percurso artístico seja reconhecido pelo seu contributo para um património cultural, também o protagonismo que pode dai vir não me parece benéfico se ofuscar a sua verdadeira razão de ser, o trabalho. É o trabalho que legitima e dá sentido à tradição que têm de ser criada para que o seu contributo possa ser considerado único e particular. Tradição que é mais que um estilo, assumindo-se nos melhores exemplos como uma ética do fazer. Tratasse em suma de cunhar uma língua. E aceitar e viver a sua evolução desde os grunhidos mais truculentos até uma tradição oral e por fim nos casos mais auspiciosos, escrita. Loquitur latine?
É pois uma pergunta pertinente pois convoca para a discussão uma questão fundamental que se prende com até que ponto a franja da população que vive alheada do fenómeno da arte contemporânea se sente apta a conviver com essa língua de Duchamp, Picasso, Warhol e Hirst. Até que ponto tem de existir um conhecimento gramatical, semântico ou sintáctico de uma circunstancia que para todos os efeitos é composta de diferentes dialectos, únicos e insubstituíveis. Será mesmo necessário conhecer o senhor Greenberg, a senhora Krauss ou outro qualquer vulto para nos aproximarmos de uma obra de arte e nos relacionarmos com ela? Falando da minha experiência enquanto espectador e frequentador de museus e exposições, não. Tirando partido do que Deleuze dizia no seu abecedário e também da minha experiência, o encontro com uma obra de arte não precisa de intermediários. Lembro-me de vários encontros que tive que me marcaram porque me revelaram alguma coisa de mim que não pode ser traduzido em palavras mas que reconheci nessas pinturas, sobretudo pinturas. Para lá de nomes o que me interessa enquanto expectador e consumidor de arte contemporânea é a coisa material.
É relação daquele corpo com o meu. Desse ponto de vista somos todos bichos, ainda que bichos intelectuais. E por conseguinte cada um que tenha tesão pelo que tiver, mediante os seus apetites, os seus gostos, as suas necessidades. É assim que eu me deixo arredar na relação com um Velasquez, um Twombly ou alguma coisa do Schutte. É uma bebedeira de um niilismo refinado, fora dos radares mundanos sempre cheios de nada. É um vazio precioso porque fala de nós apesar de não nos dizer totalmente respeito, fazendo desses objectos, veículos privilegiados para nos irmos conhecendo aos poucos com alguma elegância.
Outra pergunta que pode ser extraída deste contexto é a de saber se por não compreendermos a “língua” da arte contemporânea seremos bárbaros? A relação do público em geral com a arte contemporânea é particular e difícil. Difícil porque mesmo que inconscientemente persente que falta ali alguma coisa. E de facto falta. Quanto a mim falta o lado moral. Durante seculos a produção artística desempenhou um papel particular na manutenção de uma certa moralidade que se prendia com os assuntos retratados muitas vezes ao serviço dos patronos das encomendas. Era uma forma de legitimar o poder e secularizar uma tradição de dai advinha. Ora o advento do modernismo veio em parte mudar isso e o pós-modernismo, acabar com essa possibilidade.
Mesmo que o coleccionismo de arte seja em si um factor de prestigio, uma demonstração de um interesse por algo para alem da redundância dos dias. A arte que se produz hoje é muito mais virada para uma coisa ética, onde o fazedor houve (ou deveria ouvir ) um devir que diz respeito à ontologia de um modo de fazer, em detrimento de modas, tendências ou apetites do mercado.
É justamente aqui que julgo que o publico se perde, na medida em que vai à procura de uma narrativa, um sentido que na maioria das vezes não tem razão de ser. O sentido de uma peça reside no facto de ela ser-em-si. Admitir que um objecto não utilitário tem um direito a existir unicamente por questões desta ordem é difícil para o expectador comum, na medida em que está habituado a associar os objectos do seu dia-a-dia a aspectos bastante pragmáticos da sua vida. E esse ponto faz dos objectos ou peças de arte, objectos bárbaros (ou deverá fazer). É justamente esta estranheza que me importa enquanto espectador por ser por essa via que se abre caminho para a curiosidade, a tolerância pela diferença e a resistência à cristalização que certamente vai ocorrer se não estivermos abertos à possibilidade do novo e do diferente.
Oxalá esta ocasião produza esse efeito.