Tijolos verdes e precipícios
Maria do Mar Fazenda
Curadora independente e investigadora
O título deste texto corresponde ao início de uma frase escrita por Aldo Rossi no livro Autobiografia Científica publicado em 1981. A frase é a seguinte: «Tijolos verdes e precipícios oferecem-nos a única medida possível, além do metro, para definir um projecto.».[1]
Tentamos explicar a razão pela qual começamos um texto sobre o trabalho de Pedro Calhau (Évora, 1983) pela referência ao arquiteto italiano. O livro Autobiografia Científica, a que Rossi deu este título tão impossível quanto justo, traduz a intersecção do plano da vida (escrita na primeira pessoa) com o plano profissional. É a manifestação de que não há outra via senão a da sobreposição dos planos, das disciplinas, das vivências. A frase de onde é retirado o título deste texto indica uma metodologia: a articulação entre elementos de naturezas distintas (tijolos verdes e precipícios) produz uma espécie de ferramenta de trabalho. É esta a metodologia de Pedro Calhau.
Quem, por curiosidade pelo percurso de Pedro Calhau, visitar o seu sítio e clicar na etiqueta TRABALHO, vê aparecer uma imagem que encabeça um texto escrito pelo artista. Esta imagem não é um exemplo da sua pintura, mas antes um esquema demonstrativo do seu método de trabalho: um Diagrama de Venn. Para Rossi, e passando a Autobiografia científica pelo filtro de um Diagrama de Venn de dois círculos, tudo se passa na área de intersecção dos dois conjuntos (o biográfico e o profissional) complementada e tingida pelo plano que os contém, o Universo, que na sua linguagem comporta todas as coisas que ainda não foram absorvidas pela vida e pela arquitetura, mas que têm origem nestas e nelas um dia virão a ser integradas. Nesta medida, entendemos que para Rossi, mas também para Calhau, este plano representa o Futuro e a área que cruza os dois conjuntos, o Presente (que por sua vez também comporta o Passado). É desta intersecção que cruza os conjuntos A e B que resultam as séries de trabalho de Pedro Calhau.
No caso da metodologia de trabalho do artista, os conjuntos A e B são escolhidos a cada projeto e, tal como tijolos verdes e precipícios, são sempre elementos de diferentes mundos que enchem os círculos a intersetar. A convergência entre “famílias de objetos” de naturezas diferentes é o “ponto de partida para a realização de coleções de desenhos ou pinturas”, como descreve o artista. Estas famílias podem ser tão distantes, e ao mesmo tempo tão específicas, quanto tijolos verdes e precipícios, e.g. fetiches antropológicos e espécies de aves; acidentes de carro e cartas celestes; representações geográficas e a transcrição de um ensaio filosófico; etc.
Quando sabemos do modus operandi de Pedro Calhau ficamos surpreendidos. Num primeiro momento, porque não associamos à prática e pesquisa artísticas um qualquer determinismo positivista; mas, por outro lado, e no nosso entendimento é onde reside o seu valor, o resultado — a obra, uma imagem, uma escultura, etc. — não traduz nem tão pouco ilustra o seu método de produção, excede-o. É proposta uma forma de leitura do mundo – o grande leitmotiv da arte. When is Art? é um texto de Nelson Goodman que como o título indica desloca o ângulo de entendimento sobre a arte da causalidade para a temporalidade. Este ensaio escrito em 1977 e mais tarde publicado no livro Modos de fazer mundos, termina assim: «A maneira como um objeto ou acontecimento funciona como obra explica como, através de determinados modos de referência, aquilo que assim funciona pode contribuir para uma visão — e para a feitura — de um mundo.».[2]
O jogo com os modos de referência posto em cena por Pedro Calhau e a sua metodologia emprestada à matemática relembram-nos os usos da linguagem e a filosofia da matemática de Wittgenstein quando escreve nas suas Observações Filosóficas: «O sentido de uma pergunta reside no método para lhe dar resposta. […] Diz-me como procuras e eu dir-te-ei o que procuras.».[3] Tal como as premissas do artista sugerem que mais importante do que localizarmos o problema é como o desmontamos e o remontamos.
Num seminário em torno da famosa recolha de imagens levada a cabo por Aby Warburg e congregada no seu atlas Mnemósine, Georges Didi-Huberman terminou a sua comunicação com a pregnante frase: «Fazer um atlas é conceber uma forma que pensa, um pensamento que produz uma imagem». Se pensarmos que um atlas é um instrumento disciplinar, como um dicionário ou como um Diagrama de Venn, percebemos que a sua utilização por Pedro Calhau reinventa os significados e atribui novas possibilidades a estes dispositivos de conhecimento.
A metodologia e o atlas gerados por Pedro Calhau aproximam-se da tarefa de Warburg, de constituir uma história da arte sem texto, na medida em que também coloca a tónica na busca de ligações e de encontro de relações entre gestos representados em diversos suportes produzidos em tempos e lugares díspares: pintura renascentista, recortes de jornais, desenhos científicos, artefactos antropológicos, etc. O capital de trabalho de Warburg era a sua imensa biblioteca e banco de imagens, mas o seu potencial dependia da ativação dos elementos pelo historiador: as remontagens incessantes dos conjuntos de imagens, dispostos nos painéis forrados a feltro preto organizados em semicírculo, consistia numa tarefa que se veio a revelar interminável.
Em Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta, Georges Didi-Huberman afirma (tendo em mente Walter Benjamin) que: «Ler o mundo é algo demasiado fundamental para ser apenas confiado aos livros, ou a eles confinado: porque ler o mundo é também ligar as coisas do mundo segundo as suas "relações íntimas e secretas", as suas "correspondências" e as suas "analogias".».
Poder-se-ia pensar que a prática artística de Pedro Calhau assenta no processo, mas o método, estabelecido a cada série de trabalho, constitui o seu ponto de partida: o processo não começa antes da pergunta estar estabilizada. E ainda que a sua prática seja informada pela relação entre arte/ciência talvez seja mais certeira a sua aproximação à ciência sem nome como Giorgio Agamben nomeou o derradeiro projeto de Warburg.
Regressemos a Aldo Rossi. Agora ao filme-ensaio Ornamento e delito produzido para a apresentação da XV Trienal de Milão em 1973, comissariada por Rossi. Num dos primeiros planos do filme vemos uma parede exterior, alguém entra em campo e escreve no muro: «Eu desfigurava-me pela semelhança com tudo o que existia à minha volta. Como um molusco na sua concha, vivia no século XIX, um tempo que agora me parece oco, como uma concha vazia. Levo-a ao ouvido, e que ouço?» Não me recordo ao certo, mas penso que a citação é assinada, na parede: Walter Benjamin. Trata-se de um fragmento recortado do livro Infância Berlinense: 1900.
O filme-ensaio segue o método recolector e fragmentário que define o pensamento de Benjamin; como uma manta de retalhos, o filme conecta, através de uma montagem crua, um conjunto de fragmentos de diversas origens e tempos. Assim como neste texto, os intervalos entre os mundos nele convocados correspondem a precipícios e a ligação entre eles é construída por tijolos verdes (ou pelas palavras que compõem este texto).
Partimos da premissa de que os artistas partilham formas de ler o mundo, no caso de Pedro Calhau esta leitura cruza e monta modos de fazer mundos, excedendo as disciplinas e o conhecimento estabilizado. E esta experimentação é fundamental que (nos) aconteça.
[1] Rossi, Aldo. Autobiografia Científica. Colecção Arquitectura e Urbanismo. Edições 70, Lisboa. 2013.
[2] Goodman, Nelson. Modos de fazer mundos. Edições Asa, Lisboa. 1995.
[3] Wittgenstein, Ludwig. Tradução de M.S. Lourenço. Tratado Logico Filosófico / Investigações Filosóficas, 6ª Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. 2001.
Maria do Mar Fazenda
Curadora independente e investigadora
O título deste texto corresponde ao início de uma frase escrita por Aldo Rossi no livro Autobiografia Científica publicado em 1981. A frase é a seguinte: «Tijolos verdes e precipícios oferecem-nos a única medida possível, além do metro, para definir um projecto.».[1]
Tentamos explicar a razão pela qual começamos um texto sobre o trabalho de Pedro Calhau (Évora, 1983) pela referência ao arquiteto italiano. O livro Autobiografia Científica, a que Rossi deu este título tão impossível quanto justo, traduz a intersecção do plano da vida (escrita na primeira pessoa) com o plano profissional. É a manifestação de que não há outra via senão a da sobreposição dos planos, das disciplinas, das vivências. A frase de onde é retirado o título deste texto indica uma metodologia: a articulação entre elementos de naturezas distintas (tijolos verdes e precipícios) produz uma espécie de ferramenta de trabalho. É esta a metodologia de Pedro Calhau.
Quem, por curiosidade pelo percurso de Pedro Calhau, visitar o seu sítio e clicar na etiqueta TRABALHO, vê aparecer uma imagem que encabeça um texto escrito pelo artista. Esta imagem não é um exemplo da sua pintura, mas antes um esquema demonstrativo do seu método de trabalho: um Diagrama de Venn. Para Rossi, e passando a Autobiografia científica pelo filtro de um Diagrama de Venn de dois círculos, tudo se passa na área de intersecção dos dois conjuntos (o biográfico e o profissional) complementada e tingida pelo plano que os contém, o Universo, que na sua linguagem comporta todas as coisas que ainda não foram absorvidas pela vida e pela arquitetura, mas que têm origem nestas e nelas um dia virão a ser integradas. Nesta medida, entendemos que para Rossi, mas também para Calhau, este plano representa o Futuro e a área que cruza os dois conjuntos, o Presente (que por sua vez também comporta o Passado). É desta intersecção que cruza os conjuntos A e B que resultam as séries de trabalho de Pedro Calhau.
No caso da metodologia de trabalho do artista, os conjuntos A e B são escolhidos a cada projeto e, tal como tijolos verdes e precipícios, são sempre elementos de diferentes mundos que enchem os círculos a intersetar. A convergência entre “famílias de objetos” de naturezas diferentes é o “ponto de partida para a realização de coleções de desenhos ou pinturas”, como descreve o artista. Estas famílias podem ser tão distantes, e ao mesmo tempo tão específicas, quanto tijolos verdes e precipícios, e.g. fetiches antropológicos e espécies de aves; acidentes de carro e cartas celestes; representações geográficas e a transcrição de um ensaio filosófico; etc.
Quando sabemos do modus operandi de Pedro Calhau ficamos surpreendidos. Num primeiro momento, porque não associamos à prática e pesquisa artísticas um qualquer determinismo positivista; mas, por outro lado, e no nosso entendimento é onde reside o seu valor, o resultado — a obra, uma imagem, uma escultura, etc. — não traduz nem tão pouco ilustra o seu método de produção, excede-o. É proposta uma forma de leitura do mundo – o grande leitmotiv da arte. When is Art? é um texto de Nelson Goodman que como o título indica desloca o ângulo de entendimento sobre a arte da causalidade para a temporalidade. Este ensaio escrito em 1977 e mais tarde publicado no livro Modos de fazer mundos, termina assim: «A maneira como um objeto ou acontecimento funciona como obra explica como, através de determinados modos de referência, aquilo que assim funciona pode contribuir para uma visão — e para a feitura — de um mundo.».[2]
O jogo com os modos de referência posto em cena por Pedro Calhau e a sua metodologia emprestada à matemática relembram-nos os usos da linguagem e a filosofia da matemática de Wittgenstein quando escreve nas suas Observações Filosóficas: «O sentido de uma pergunta reside no método para lhe dar resposta. […] Diz-me como procuras e eu dir-te-ei o que procuras.».[3] Tal como as premissas do artista sugerem que mais importante do que localizarmos o problema é como o desmontamos e o remontamos.
Num seminário em torno da famosa recolha de imagens levada a cabo por Aby Warburg e congregada no seu atlas Mnemósine, Georges Didi-Huberman terminou a sua comunicação com a pregnante frase: «Fazer um atlas é conceber uma forma que pensa, um pensamento que produz uma imagem». Se pensarmos que um atlas é um instrumento disciplinar, como um dicionário ou como um Diagrama de Venn, percebemos que a sua utilização por Pedro Calhau reinventa os significados e atribui novas possibilidades a estes dispositivos de conhecimento.
A metodologia e o atlas gerados por Pedro Calhau aproximam-se da tarefa de Warburg, de constituir uma história da arte sem texto, na medida em que também coloca a tónica na busca de ligações e de encontro de relações entre gestos representados em diversos suportes produzidos em tempos e lugares díspares: pintura renascentista, recortes de jornais, desenhos científicos, artefactos antropológicos, etc. O capital de trabalho de Warburg era a sua imensa biblioteca e banco de imagens, mas o seu potencial dependia da ativação dos elementos pelo historiador: as remontagens incessantes dos conjuntos de imagens, dispostos nos painéis forrados a feltro preto organizados em semicírculo, consistia numa tarefa que se veio a revelar interminável.
Em Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta, Georges Didi-Huberman afirma (tendo em mente Walter Benjamin) que: «Ler o mundo é algo demasiado fundamental para ser apenas confiado aos livros, ou a eles confinado: porque ler o mundo é também ligar as coisas do mundo segundo as suas "relações íntimas e secretas", as suas "correspondências" e as suas "analogias".».
Poder-se-ia pensar que a prática artística de Pedro Calhau assenta no processo, mas o método, estabelecido a cada série de trabalho, constitui o seu ponto de partida: o processo não começa antes da pergunta estar estabilizada. E ainda que a sua prática seja informada pela relação entre arte/ciência talvez seja mais certeira a sua aproximação à ciência sem nome como Giorgio Agamben nomeou o derradeiro projeto de Warburg.
Regressemos a Aldo Rossi. Agora ao filme-ensaio Ornamento e delito produzido para a apresentação da XV Trienal de Milão em 1973, comissariada por Rossi. Num dos primeiros planos do filme vemos uma parede exterior, alguém entra em campo e escreve no muro: «Eu desfigurava-me pela semelhança com tudo o que existia à minha volta. Como um molusco na sua concha, vivia no século XIX, um tempo que agora me parece oco, como uma concha vazia. Levo-a ao ouvido, e que ouço?» Não me recordo ao certo, mas penso que a citação é assinada, na parede: Walter Benjamin. Trata-se de um fragmento recortado do livro Infância Berlinense: 1900.
O filme-ensaio segue o método recolector e fragmentário que define o pensamento de Benjamin; como uma manta de retalhos, o filme conecta, através de uma montagem crua, um conjunto de fragmentos de diversas origens e tempos. Assim como neste texto, os intervalos entre os mundos nele convocados correspondem a precipícios e a ligação entre eles é construída por tijolos verdes (ou pelas palavras que compõem este texto).
Partimos da premissa de que os artistas partilham formas de ler o mundo, no caso de Pedro Calhau esta leitura cruza e monta modos de fazer mundos, excedendo as disciplinas e o conhecimento estabilizado. E esta experimentação é fundamental que (nos) aconteça.
[1] Rossi, Aldo. Autobiografia Científica. Colecção Arquitectura e Urbanismo. Edições 70, Lisboa. 2013.
[2] Goodman, Nelson. Modos de fazer mundos. Edições Asa, Lisboa. 1995.
[3] Wittgenstein, Ludwig. Tradução de M.S. Lourenço. Tratado Logico Filosófico / Investigações Filosóficas, 6ª Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. 2001.