Do Inesgotável
Mariana Maria Gaspar
Curadora
O artista é livre. Primeiro, a sua liberdade é um caso perdido, é a mais vulgar de todas as liberdades, a menos digna também de ser ambicionada. Mas o artista é livre assim mesmo. Destrói e calunia; prega e salta na praça; enforca-se à beira-rio ou acaba os seus dias como usurário. É este o artista – livre, estúpido, vaidoso e um pouco louco. É pitoresco e amado, deixa obras belas – é um mistério como as engendrou, é um enigma como pode ser exato e como pode trabalhar tanto.
Agustina Bessa-Luís[1]
É justamente esta estranheza que me importa (…) por ser essa via que abre caminho para a curiosidade, a tolerância pela diferença e a resistência à cristalização (…).
Pedro Calhau
Gostaria de anteceder este texto com uma nota pessoal que, de algum modo, revela o motivo que me trouxe aqui e que, a meu ver, justifica o tom da escrita. Conheço o Pedro Calhau (Évora, 1983) há já alguns anos, apresentou-nos o Sérgio Coutinho, sobre quem pensámos, em uníssono, que poderia escrever para este catálogo, uma espécie de “biografia do artista”, na certeza de que nos entregaria outra coisa qualquer, e que esta, seguramente, iria muito mais ao nosso encontro e da exposição que ensaiávamos. Conheci o Pedro ao fim do dia, chegados da consensualmente aplaudida defesa de doutoramento do Sérgio, em História da Arte, numa amena conversa à mesa, rodeada de amigos, onde se falou, sem pretensões, de Hölderlin, Nietzsche, Wittgenstein, Agamben, entre outros, como se estivessem ali connosco. A estranheza desconcertante que me acompanhou naquele jantar nunca desapareceu (não é defeito, será antes feitio, válido para ambas as partes), embora perfeitamente em linha com o espírito revolucionário que o antecedera e com o horizonte de possibilidades que via abrir-se ao observar o entusiasmo do ilustre júri académico perante uma tese e um discurso tão originais e inesperados quanto provocadores e até informais. Voltando ao Pedro Calhau e não me prolongando, diria apenas que lhe reconheço, desde aquele primeiro dia, como amigo e artista, na vida e na obra, uma generosa e insaciável curiosidade mas também uma simplicidade que não sendo totalmente inocente, no melhor sentido do termo, aquele que atribuímos às crianças, é profundamente espontânea e instintiva, afirmando-se na prática artística, enquanto ato (des)comprometido de expressão e comunicação, necessidade, direito e liberdade.
Though this be madness, yet there is method in’t.
Shakespeare[2]
A solução inédita de um problema de comunicação visual (…) deve surgir naturalmente do bom uso da fantasia, da invenção e da criatividade, coordenadas por uma adequada metodologia operativa.
Bruno Munari[3]
Este primeiro subtítulo, P.C.- Processo Criativo (e/ou P.C. - Pedro Calhau) surge em jeito de diálogo cúmplice com o caráter lúdico, mas “pictural” que o artista confere à atribuição de um título para cada série de trabalhos e de versões reduzidas do mesmo para cada trabalho, sublinhando-se que esta titularidade tanto organiza e agrupa, quanto confunde mais ainda os códigos que parece anunciar. Dou como exemplo, SN, iniciais que remetem para Sidereus Nuncius de Galileo Galilei, tratado científico (1610) fundamentado em observações astronómicas, também conhecido por Mensageiro Sideral ou das Estrelas, obra que serviu de inspiração, mas sobretudo de pretexto para o desenvolvimento da série Nous (SN), à qual voltaremos.
Se entre 2008 e 2010, o Pedro Calhau baseou toda a sua prática artística na construção de diários gráficos, suporte e meio que permitiu uma sistematização desse trabalho e, parece-me, do próprio pensamento, entretanto alicerçado na leitura assídua e crítica de alguns teóricos e artistas de eleição, e antes de mais, no contacto sensível e continuado com obras em exposição, nos anos seguintes, designadamente com o novo atelier do Freixo (Redondo), o Pedro confirma uma mudança de atitude, sobretudo da metodologia dos processos criativos, ao encarar os cadernos não como “um repositório de influências”, para serem antes entendidos como “espaço de invenção”, lugar essencial de reflexão e experimentação, de revisão e atualização contínuas. Um pouco mais tarde, descobre Aby Warburg e esse encontro propicia uma nova viragem: os desenhos passam a agrupar-se em séries temáticas e deixam de traduzir uma exclusividade da criação e produção artísticas, iniciando-se uma fase de coleta obsessiva de imagens, de reproduções, sobretudo retiradas da internet e também de fontes diversas, das periódicas às literárias, entre outras, que fotocopia, corta e recorta, constituindo-se como um “atlas”, mais do que um arquivo, pessoal e transmissível, lúdico e experimental, relacional e dinâmico.
Ao procurar uma formulação teórica que pudesse enquadrar e sedimentar uma metodologia de trabalho, bem como acompanhar o processo criativo em curso, redescobre a Teoria dos Conjuntos, já sua conhecida de outras andanças, sistematizada agora nas suas pesquisas internáuticas e exercícios gráficos. Agradou-lhe a conceptualização que lhe permitia e, mais ainda, a sua expressão diagramática: o Diagrama de Venn, que se constrói a partir de séries ou coleções de linhas curvas fechadas, inscritas num plano, que encerram, simbolicamente, as séries ou coleções de elementos dos conjuntos representados e onde a intersecção dessas linhas define o grau e a qualidade de pertença dos elementos de cada grupo, passa a integrar a prática artística, de modo mais ou menos tangencial, mais ou menos simbólico, mas constitutivo do seu ato criativo, desde o momento de pesquisa e investigação ao de receção. Na teoria dos conjuntos, os diagramas geram formas e ideias, permitindo visualizar uma possível leitura dos números. Sistemas essencialmente operativos, os diagramas[4], enquanto componentes do processo de raciocínio, abrem espaço para que qualquer relação se possa estabelecer, revelando diferenças, pontos de contacto e contágio, complementaridades.
Numa clara vontade de aproximar o espetador e conferir-lhe elementos para que possa ativar a obra e desdobrar as leituras, podemos encontrar o diagrama convocado e recriado na gravura da série O.F.F., no vinil da série NOUS e em alguns gráficos que integram o livro de artista The Practice Journal e que surgem numa instalação inédita nesta exposição.
Enquanto a pintura procura revisitar-se, reinventando-se, o desenho procura resistir e contrariar a velocidade mediática das imagens, libertando o que nele é movimento e abertura, deriva e potência. Ao insistir no exercício de desenhar com o acaso, como com a fotografia e/ou o texto, o artista explora as suas possibilidades inventivas e a sua capacidade de se relacionar com outros meios e suportes, de forma dinâmica, sublinhando, naturalmente, a importância do desenho na integração das artes.
As instalações que agora se apresentam pela primeira vez remetem para o cruzamento de linguagens e para a dissolução de fronteiras disciplinares, e contrariam a distância que separa o espetador da obra, procurando, pelo contrário, criar um maior contacto, através da imersão proporcionada pela instalação vídeo em torno da qual se pode circular, tendo cada um o poder de participar da obra a partir da sua “leitura performativa” e tecendo, consequentemente, distintas ligações entre as imagens projetadas, ou também pela partilha dos gráficos selecionados e fotocopiados a partir de um livro de artista[5] e aqui reunidos numa instalação acrílica de parede que mimetiza as convencionais estruturas museográficas, suportes das “folhas de sala”.
1.1. O.F.F. - Our Founding Fathers (2018) – da técnica
Que coisas vemos, de resto, nas manchas das paredes, no conjunto de fragmentos de mármore que formam determinados pavimentos, em certas rochas, em certas nuvens? Amiúde, um rosto (…).
Bruno Munari[6]
O.F.F. é o epítome de um vasto e diverso conjunto de obras que compreende uma série de esculturas em gesso, rostos deformados a partir da inversão dos moldes, um exercício sobre a matéria e a forma, sobre as noções de cheio e vazio, de côncavo e convexo, de interior e exterior; numa outra série de desenhos-pinturas[7], Pedro Calhau explora as possibilidades das relações intrínsecas entre os dois domínios da expressão plástica, bem como a técnica do marmoreado (acaso/fundo/paisagem) conjugada com a representação bidimensional dos bustos em gesso (traço/primeiro plano/retrato), resultado da observação dos registos fotográficos que são agora ferramenta de trabalho e via de experimentação; presente também, uma gravura de natureza gráfica, conceptualização do trabalho e consciência de que a gramática do desenho pode ser enriquecida através de exercícios e processos de gravação; finalmente, uma instalação inédita que parte de uma reflexão em curso a propósito da potência intermedial e transmedial das disciplinas e dos meios artísticos, aqui vagamente sugerida pelo retorno ao projetor de diapositivos, uma experiência visual e auditiva: as imagens fotográficas foram primeiramente projetadas na parede do atelier do artista, de um modo rudimentar, a partir de um computador portátil, e posteriormente fotocopiadas, servindo a vontade de representação e de um maior detalhe formal, deixando transparecer que muitas das propriedades dos objetos não são visíveis e que cabe à imaginação convocá-las.
O.F.F. é também, ou sobretudo, um trabalho sobre a importância da relação entre repetição e variação na prática artística, entre a experimentação continuada e aprimorada da técnica do marmoreado, explorando a consistência da superfície de inscrição, o excesso e a interferência, o incidente labiríntico que a tinta engendra sobre o papel, o intervir e o abster e o debruçar sobre a força motriz do traço, do olhar e do movimento do corpo sobre a matéria.
Retomando a passagem em epígrafe e abrindo caminho para o próximo ponto, recordo, com Munari, um conselho de Leonardo da Vinci para que se observem as manchas de salitre como estímulo à imaginação, ou, no mesmo sentido, o gesto de Botticelli ao lançar esponjas húmidas sobre a parede de modo a obter estímulos visuais imprevistos. Poderíamos continuar a percorrer exemplos de todos os tempos e geografias, reconhecendo, pontualmente, que destas práticas repetidas à exaustão, continuam a surgir objetos que nos conseguem surpreender e cativar.
Nem todo o ato de resistência é uma obra de arte,
embora, de certa maneira, o seja. Nem toda a obra de arte é um ato de resistência e, no entanto, de certa maneira, sê-lo-á.
Gilles Deleuze[8]
A coisa mais importante num artista é manter a sua individualidade, a sua loucura individual e, sobretudo, carregar um mundo consigo. É só isso.
Rui Chafes[9]
Nesta exposição e, naturalmente, na obra de Pedro Calhau, encontramos exemplos suficientes e diversos para falarmos de “associação livre”. Conhecendo o trabalho e os trabalhos do artista, visitando o seu espaço de laboração e olhando e escutando o modo como o faz, do processo conceptual ao construtivo, sabemos, e já o dissemos, que a liberdade, a liberdade de associar temas, processos, expressões, suportes e materiais, a liberdade na conceção mais ampla da sua essência, é epítome da obra. Não há ligações ou interligações fixas, todas elas são contingentes e deixam transparecer o sentido dessa liberdade e da imaginação, inerentes ao ato criativo, quer no plano da própria criação e produção, quer ainda no da receção da obra. Como disse o poeta, “Toda a ligação é simultaneamente liberdade.”[10]
“Como se pode imaginar o que não existe?” pergunta Wittgenstein em O Livro Azul (1933/34) ao que responde: “Se o fazemos imaginamos combinações não existentes de elementos existentes.” Citando-o, Gonçalo M. Tavares acrescenta: “ligar de outra maneira o que já existe é colocar no mundo coisas inexistentes, porque uma nova ligação entre os velhos A e B transforma A e B, inventa-os (…).”[11]
O jogo começa pela definição de algumas regras que apontam um caminho, uma direção, e pressupõe um exercício de aprendizagem, de treino e repetição e, mais do que qualquer outro predicado intrínseco, de imaginação. Umberto Eco, na sua Viagem na Irrealidade Quotidiana, considera o jogo como um tempo privilegiado, um desvio do mundo exterior, uma exploração do imaginário e da criatividade, uma brincadeira, tal como as estórias que contamos e recontamos, são o melhor modo de contrariar o imperativo de um sentido único. Há na obra de Pedro Calhau esse sentido da partilha, do lúdico, da estória por contar, da que se inventa ou reinventa na plasticidade do imaginário, dos meios e materiais que a criam e recriam, na inventiva do quotidiano criativo. É ainda a imaginação como “faculdade de nos libertarmos das imagens primeiras, de mudar as imagens”, como escreveu Bachelard[12].
As séries aqui convocadas, focam-se na relação dialética entre matéria e energia, real e construção, documento e ideia, arquivo e memória, original e cópia, prática e teoria, tratado e ensaio… para avançar apenas com algumas sugestões dialéticas.
2.1. NOUS (vária, 2016-2017) e ESTRELAS (2015-2016) – da composição
Under the stars/ I found a star/ That asked me where to go // Under the stars/ I found a star/ Lost in space // Under the road/ I found a road/ That led to another road // Under that road/ I found a road/ That led nowhere.
António Olaio[13]
Os desenhos e pinturas sobre papel e tela das séries NOUS, termo filosoficamente ambíguo, com utilizações e significações múltiplas, mas que aqui importa exatamente na sua ambiguidade e que, de forma redutora, sintetizaria como relativo à ação da mente, partem da conjugação de dois grupos de imagens: galáxias e automóveis.
Por um lado, temos a referência ao universo galáctico que não se circunscreve à configuração espacial de aglomerados de estrelas ou a figurações astrológicas, “relativo ao aspeto dos astros”, antes remete para um conjunto de morfologias, dinâmicas, densidades e energias que nos parecem essencialmente indecifráveis e ilimitadas. Assim, representar uma estrela, fazê-la sobressair no tecido imenso que a envolve, para além do denso simbolismo que carrega, é convocar tempo e espaço, matéria e éter, noite e dia, enfim, forma, luz, temperatura, movimento, velocidade… inúmeras “condições” ou elementos que servem também, de modo diverso, o léxico da criação artística. A noção de inesgotável pode aqui relacionar-se com o infinito, mas também com o indefinido e o desconhecido, o que não conhece limites ou termo, o que não se conhece, o misterioso e, simultaneamente, com a capacidade e o poder da visibilidade, associados à imaginação e à ação criativa. O inesgotável liberta-nos do real, do verdadeiro, enquanto paradigmas paralisantes ou limitadores da ação, do devir.
Por outro lado, a presença figurativa de estradas e/ou automóveis que introduzem uma expressão cinematográfica, nomeadamente no sentido da fotografia e da montagem, transportam-me, não sem um desvio um tanto abusivo, para uma ideia/imagem de Álvaro Lapa quando afirma qualquer coisa como, a figuração é o veículo e jamais o fim. Estas não são composições naturalistas, mas ficções absolutas, cenas que suspendem a representação do real e abrem lugar ao “maravilhoso”, ao artificial, ao instável…
2.2. MAPAS da imaginação: FORECAST (2015-2018) e COSMOS (2019) – da montagem
[O Atlas] Desconstrói, pela sua própria exuberância, os ideais de unicidade, de especificidade, de pureza, de conhecimento integral. É uma ferramenta, não do esgotamento lógico das possibilidades dadas, mas da inesgotável abertura às possibilidades não dadas ainda. O seu princípio, o seu motor, mais não é do que a imaginação.
Georges Didi-Huberman[14]
Forecast: A partir de três elementos ou conjuntos - um livro de alimentos de onde retira as formas que transforma em realidades irreais de superfícies sólidas (continentes, ilhas…), mapas de que se apropria e recria e que são a textura de base que no seu marmoreado serão, talvez, oceano ou mar, interrompido pela aparente aleatoriedade dos quadrados negros extraídos de palavras cruzadas que o artista dispõe no espaço amplo e aberto, em todo ele, num xadrez imaginário, onde a disposição representa os intervalos entre os termos, termos que busca num universo literário de obras que integram o cânone da imortalidade. Neste conjunto, destacaremos a importância da cor na ativação dos sentidos: a cor como elemento de duração, de demora, marcando um ritmo, não só constrói um lugar, como tem o poder de prolongar o tempo, num efeito idêntico ao que tem, ou pretende e desafia - o da inscrição textual.
Cosmos: A transcrição de um ensaio filosófico… mapas, escalas, legendas, símbolos e apontamentos gráficos, objetos arquitetónicos ou simples interrupções da paisagem, natureza ou intervenção humana, tudo se constitui como sujeitos da leitura, como fragmentos de interpretação relacional no espaço que habitam, desconstrução do conceito de janela aberta ao mundo, antes post-its, auxiliadores de memória, ícones de outras presenças. Ao contrário do marmóreo casuístico e aleatório, o traço firme e preciso de linhas coordenadas, constrói uma grelha que indicia a pretensa arrumação dos mapas, conferindo-lhes uma autenticidade apenas imaginada. Como a quadrícula axadrezada de Forecast, como a palavra cruzada que se propõe e se arruma, também a grelha na série Cosmos organiza a representação ou simula essa hipotética estrutura. A grelha emancipa-se com a vanguarda e torna-se tema da pintura e não apenas ferramenta de apoio. Tudo afinal se constitui como memória visual de uma prática e índice de um gesto criativo. Do dar a ver simultaneamente um conjunto de imagens numa relação aberta[15], surgem inúmeras outras imagens e (re)leituras (como acontece, por exemplo, com as cores…) legando ao espetador a oportunidade de participar e se demorar.
Se o Atlas Mnemosyne de Aby Warburg e a sua “iconologia dos intervalos” se tornaram referências constantes da produção teórica e artística dos nossos tempos, transversal a diversas disciplinas, e se neste sentido, o texto citado de Didi-Huberman, se tornou obra incontornável para quem procura uma aproximação a Warburg, também observamos que muitos artistas se servem essencialmente do seu método de conhecimento e de algumas premissas, desviando-as para o seu trabalho, sem procurar estabelecer um diálogo com a sua pesquisa e o seu projeto, deixando-o de algum modo pairar antes como uma afinidade eletiva. Há uma porosidade que se fomenta no sentido de desenvolver e transformar não aquilo que conhecemos mas o desconhecido ou a relação com este, de baralhar as ideias, as premissas, as regras, deixando interferir o quotidiano, a memória, a experiência, a imaginação, as histórias e assim, inevitavelmente, expandir o nosso horizonte de visibilidade e possibilidade.
A lógica da montagem não se circunscreve à combinação de textos e imagens num mesmo trabalho, mas também entre trabalhos da mesma série ou entre séries, ou entre artista e espetador. A estrada, a galáxia, a paisagem, o mapa, são lugares de referência, mas também de abertura e circulação, tanto quanto as formas informes, a quadrícula a branco e negro, a quadrícula vazia de inspiração geográfica, os cortes, os fragmentos, os vazios, os intervalos entre papéis e/ou telas: tudo é potência criativa.
Nestes trabalhos, escrita e texto remetem-nos, antes de mais, para a ideia de Wittgenstein de que a linguagem não aponta de imediato para um significado, mas para si própria. O texto manuscrito a lápis, lembrando a sua natureza efémera e contingente, pode ser visto enquanto imagem, não apenas na aparência de uma mancha que alastra, como também na ilegibilidade, no potencial de hipotéticas releituras e na dificuldade de lhe atribuir um sentido na interação que procuramos com a pintura e com a fotografia. Desvinculado da função narrativa, o texto não descreve ou informa, acrescenta apenas, do mesmo modo que uma linha, uma cor, um ícone ou mesmo um mapa, cujo desenho não representa um território determinado: inventa-o. São elementos constitutivos que antes de mais promovem uma receção fecunda e livre da obra. Exercício compulsivo de repetição e remediação, entre razão e plasticidade, intenção e alienação, persistência e deriva, o gesto da escrita convive com os demais, ora afirmando a sua singularidade, ora (con)fundindo-se num todo composto.
Motivo e vontade de representação, a montagem lembra-nos a “impureza fundamental das imagens, a sua vocação para o deslocamento”[16] e parece desafiar-nos a uma maior aproximação, do texto como da imagem, reduzindo o espaço e estendendo o tempo, o da obra e o nosso, para que possamos continuar.
Tudo é semente.
Novalis[17]
(…) ensaiemos para ver se a coisa funciona ou não, se desvela ou turva o nosso olhar e, de um modo ou de outro, insistamos na tentativa.
Georges Didi-Huberman[18]
A exposição Do Inesgotável procura revisitar uma seleção de trabalhos do Pedro Calhau, desenho, pintura, escultura, gravura, fotografia e instalação, texto e imagem, que se entende sugestiva e representativa da sua obra, não apenas no sentido de a dar a conhecer numa dinâmica relacional mas também de ativar e questionar o processo criativo que simultaneamente a une e a liberta. Pensámos e desenhámos este projeto como uma travessia possível por um conjunto já vasto de trabalhos que nos parece reclamar um olhar abrangente, tão crítico quanto ainda e sempre experimental, que permita ensaiar ideias e coordenadas que sirvam de estímulo à participação ativa do visitante-espetador.
Por um lado, a organização do e no espaço procura acompanhar um certo registo temporal, que não entendemos como evolutivo, mas que revela um processo em curso, horizontal, expansivo, em contínuo movimento e transformação. Assim, ainda que cada sala possa remeter para um momento de criação no percurso artístico do artista, a partir de uma determinada série, convocando quer a relação intrínseca entre arte e vida, experiência e vivência, quer as práticas/questões, referências e afinidades, o sentido da incursão é rizomático e, como tal, procura promover a multiplicação das associações e das leituras.
Pensar e apresentar o trabalho do Pedro implica convocar um conjunto de conceitos e de ideias que atravessam a sua obra, destacando-se, antes de quaisquer outros, a imaginação, a associação livre e a montagem. Também os géneros na pintura, como o retrato ou a paisagem, os meios e técnicas, como o desenho e a pintura, a colagem ou o marmoreado, entre outros, assim como as metodologias, assuntos e teorias que tem vindo a desenvolver no decurso da sua pesquisa e criação artística, constituem-se, simultaneamente, como matéria e ferramenta, tema e problema. Questionar e, de certo modo, retomar um trajeto que não foi, como são poucos, previamente traçado, tendo sido antes fruto de uma prática e de uma experimentação contínuas, com uma série de repetições e variações mais ou menos programadas ou mesmo reconhecidas, de encontros e desencontros, aproximações e desvios, de vontades e de acasos, é também aferir da oportunidade, da pertinência e da consequência daquilo que foi produzido, ensaiando agora um exercício outro que é, ao mesmo tempo, de síntese e de construção, programa e ensaio.
[1] Agustina Bessa-Luís, “Os romances, as obras de arte, a expressão e a filosofia portuguesa e a liberdade do artista”, in Caderno de Significados, 2013, Lisboa: Guimarães Editores, p. 82.
[2] Shakespeare, Hamlet, II. 2.
[3] Bruno Munari, Fantasia, 1997, 2008 (3ª ed.), Lisboa: Ed. 70, p.147.
[4] A título de curiosidade, podemos também pesquisar sobre o ícone diagramático de Peirce, uma espécie de extensão do diagrama de Venn. Para Peirce os diagramas, as imagens e as metáforas, são os três tipos de hipoícones: os primeiros são entendidos enquanto “imagens em movimento do pensamento”. Ver Hartshorne, Paul Weiss (eds.), Charles Sanders Peirce Collected Papers, Vol. IV: The Simplest Mathematics, 1933, Cambridge, MA., Harvard University Press.
[5] O artista, cada vez mais consciente do seu trabalho enquanto processo, sente-se impelido a escrever, a reunir ideias e agrupar imagens, dando origem, em alguns casos, a pequenas edições, a livros de artista.
[6] Bruno Munari, op. cit. p.30.
[7] Recordo aqui uma feliz passagem de José Luís Porfírio, numa breve crítica publicada no semanário Expresso em 2015, a propósito de uma exposição do Pedro: “(…) o gesto do pintor que desenha com o pincel, tanto na definição quanto na indefinição das formas, uma fronteira, portanto.”
[8] Tradução livre da autora, a partir do original: Tout acte de résistance n’est pas une œuvre d’art bien que, d’une certaine manière elle en soit. Toute œuvre d’art n’est pas un acte de résistance et pourtant, d’une certaine manière, elle l’est, Gilles Deleuze, “Qu’est-ce que l’acte de création?”, conferência proferida em 1987 na Fundação Femis (Fondation Européenne pour les Métiers de L'iamge et du Son) e publicada na íntegra em 1988 na revista Trafic, nº 27. Ver Gilles Deleuze, "O Ato de Criação", https://www.youtube.com/watch?v=a_hifamdISs .
[9] Rui Chafes, “Textos para Durante o Fim, filme de João Trabulo (2003)”, in O Silêncio de…, 2006, Lisboa: Assírio & Alvim, p. 95.
[10] Novalis, (1798), Fragmentos de Novalis, 1992, Lisboa: Assírio & Alvim, p.73.
[11] Gonçalo M. Tavares, 2013, Atlas do Corpo e da Imaginação: teorias, fragmentos e imagens, Lisboa: Ed. Caminho, p.502.
[12]Gastond Bachelard, citado por Gonçalo M. Tavares, op. cit., p.377.
[13]Under the stars, video (4’40’’), 2006, cd Blaupunkt Blues (Lux Records), António Olaio e João Taborda.
[14] Georges Didi-Huberman, Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta, 2013, Lisboa: KKYM, p.13.
[15] Recordo aqui as palavras de António Olaio que me parecem oportunas: “Como qualquer artista sou um técnico de estímulos. É como um cientista a misturar substâncias. Para a reação acontecer os reagentes têm que estar em proporções que resultem. E essa medida não está na convergência das mensagens. Estará sobretudo nas várias divergências complementares que as mensagens tenham.” António Olaio, I THINK DIFFERENTLY NOW THAT I CAN PAINT, 2007, Guimarães: Centro Cultural Vila-Flôr, p.39.
[16] Geoges Didi-Huberman, op. cit, p. 14.
[17] Novalis, op. cit., p.49.
[18] Georges Didi-Huberman, op. cit, p. 248.
Mariana Maria Gaspar
Curadora
O artista é livre. Primeiro, a sua liberdade é um caso perdido, é a mais vulgar de todas as liberdades, a menos digna também de ser ambicionada. Mas o artista é livre assim mesmo. Destrói e calunia; prega e salta na praça; enforca-se à beira-rio ou acaba os seus dias como usurário. É este o artista – livre, estúpido, vaidoso e um pouco louco. É pitoresco e amado, deixa obras belas – é um mistério como as engendrou, é um enigma como pode ser exato e como pode trabalhar tanto.
Agustina Bessa-Luís[1]
É justamente esta estranheza que me importa (…) por ser essa via que abre caminho para a curiosidade, a tolerância pela diferença e a resistência à cristalização (…).
Pedro Calhau
Gostaria de anteceder este texto com uma nota pessoal que, de algum modo, revela o motivo que me trouxe aqui e que, a meu ver, justifica o tom da escrita. Conheço o Pedro Calhau (Évora, 1983) há já alguns anos, apresentou-nos o Sérgio Coutinho, sobre quem pensámos, em uníssono, que poderia escrever para este catálogo, uma espécie de “biografia do artista”, na certeza de que nos entregaria outra coisa qualquer, e que esta, seguramente, iria muito mais ao nosso encontro e da exposição que ensaiávamos. Conheci o Pedro ao fim do dia, chegados da consensualmente aplaudida defesa de doutoramento do Sérgio, em História da Arte, numa amena conversa à mesa, rodeada de amigos, onde se falou, sem pretensões, de Hölderlin, Nietzsche, Wittgenstein, Agamben, entre outros, como se estivessem ali connosco. A estranheza desconcertante que me acompanhou naquele jantar nunca desapareceu (não é defeito, será antes feitio, válido para ambas as partes), embora perfeitamente em linha com o espírito revolucionário que o antecedera e com o horizonte de possibilidades que via abrir-se ao observar o entusiasmo do ilustre júri académico perante uma tese e um discurso tão originais e inesperados quanto provocadores e até informais. Voltando ao Pedro Calhau e não me prolongando, diria apenas que lhe reconheço, desde aquele primeiro dia, como amigo e artista, na vida e na obra, uma generosa e insaciável curiosidade mas também uma simplicidade que não sendo totalmente inocente, no melhor sentido do termo, aquele que atribuímos às crianças, é profundamente espontânea e instintiva, afirmando-se na prática artística, enquanto ato (des)comprometido de expressão e comunicação, necessidade, direito e liberdade.
- P.C. - Processo Criativo
Though this be madness, yet there is method in’t.
Shakespeare[2]
A solução inédita de um problema de comunicação visual (…) deve surgir naturalmente do bom uso da fantasia, da invenção e da criatividade, coordenadas por uma adequada metodologia operativa.
Bruno Munari[3]
Este primeiro subtítulo, P.C.- Processo Criativo (e/ou P.C. - Pedro Calhau) surge em jeito de diálogo cúmplice com o caráter lúdico, mas “pictural” que o artista confere à atribuição de um título para cada série de trabalhos e de versões reduzidas do mesmo para cada trabalho, sublinhando-se que esta titularidade tanto organiza e agrupa, quanto confunde mais ainda os códigos que parece anunciar. Dou como exemplo, SN, iniciais que remetem para Sidereus Nuncius de Galileo Galilei, tratado científico (1610) fundamentado em observações astronómicas, também conhecido por Mensageiro Sideral ou das Estrelas, obra que serviu de inspiração, mas sobretudo de pretexto para o desenvolvimento da série Nous (SN), à qual voltaremos.
Se entre 2008 e 2010, o Pedro Calhau baseou toda a sua prática artística na construção de diários gráficos, suporte e meio que permitiu uma sistematização desse trabalho e, parece-me, do próprio pensamento, entretanto alicerçado na leitura assídua e crítica de alguns teóricos e artistas de eleição, e antes de mais, no contacto sensível e continuado com obras em exposição, nos anos seguintes, designadamente com o novo atelier do Freixo (Redondo), o Pedro confirma uma mudança de atitude, sobretudo da metodologia dos processos criativos, ao encarar os cadernos não como “um repositório de influências”, para serem antes entendidos como “espaço de invenção”, lugar essencial de reflexão e experimentação, de revisão e atualização contínuas. Um pouco mais tarde, descobre Aby Warburg e esse encontro propicia uma nova viragem: os desenhos passam a agrupar-se em séries temáticas e deixam de traduzir uma exclusividade da criação e produção artísticas, iniciando-se uma fase de coleta obsessiva de imagens, de reproduções, sobretudo retiradas da internet e também de fontes diversas, das periódicas às literárias, entre outras, que fotocopia, corta e recorta, constituindo-se como um “atlas”, mais do que um arquivo, pessoal e transmissível, lúdico e experimental, relacional e dinâmico.
Ao procurar uma formulação teórica que pudesse enquadrar e sedimentar uma metodologia de trabalho, bem como acompanhar o processo criativo em curso, redescobre a Teoria dos Conjuntos, já sua conhecida de outras andanças, sistematizada agora nas suas pesquisas internáuticas e exercícios gráficos. Agradou-lhe a conceptualização que lhe permitia e, mais ainda, a sua expressão diagramática: o Diagrama de Venn, que se constrói a partir de séries ou coleções de linhas curvas fechadas, inscritas num plano, que encerram, simbolicamente, as séries ou coleções de elementos dos conjuntos representados e onde a intersecção dessas linhas define o grau e a qualidade de pertença dos elementos de cada grupo, passa a integrar a prática artística, de modo mais ou menos tangencial, mais ou menos simbólico, mas constitutivo do seu ato criativo, desde o momento de pesquisa e investigação ao de receção. Na teoria dos conjuntos, os diagramas geram formas e ideias, permitindo visualizar uma possível leitura dos números. Sistemas essencialmente operativos, os diagramas[4], enquanto componentes do processo de raciocínio, abrem espaço para que qualquer relação se possa estabelecer, revelando diferenças, pontos de contacto e contágio, complementaridades.
Numa clara vontade de aproximar o espetador e conferir-lhe elementos para que possa ativar a obra e desdobrar as leituras, podemos encontrar o diagrama convocado e recriado na gravura da série O.F.F., no vinil da série NOUS e em alguns gráficos que integram o livro de artista The Practice Journal e que surgem numa instalação inédita nesta exposição.
Enquanto a pintura procura revisitar-se, reinventando-se, o desenho procura resistir e contrariar a velocidade mediática das imagens, libertando o que nele é movimento e abertura, deriva e potência. Ao insistir no exercício de desenhar com o acaso, como com a fotografia e/ou o texto, o artista explora as suas possibilidades inventivas e a sua capacidade de se relacionar com outros meios e suportes, de forma dinâmica, sublinhando, naturalmente, a importância do desenho na integração das artes.
As instalações que agora se apresentam pela primeira vez remetem para o cruzamento de linguagens e para a dissolução de fronteiras disciplinares, e contrariam a distância que separa o espetador da obra, procurando, pelo contrário, criar um maior contacto, através da imersão proporcionada pela instalação vídeo em torno da qual se pode circular, tendo cada um o poder de participar da obra a partir da sua “leitura performativa” e tecendo, consequentemente, distintas ligações entre as imagens projetadas, ou também pela partilha dos gráficos selecionados e fotocopiados a partir de um livro de artista[5] e aqui reunidos numa instalação acrílica de parede que mimetiza as convencionais estruturas museográficas, suportes das “folhas de sala”.
1.1. O.F.F. - Our Founding Fathers (2018) – da técnica
Que coisas vemos, de resto, nas manchas das paredes, no conjunto de fragmentos de mármore que formam determinados pavimentos, em certas rochas, em certas nuvens? Amiúde, um rosto (…).
Bruno Munari[6]
O.F.F. é o epítome de um vasto e diverso conjunto de obras que compreende uma série de esculturas em gesso, rostos deformados a partir da inversão dos moldes, um exercício sobre a matéria e a forma, sobre as noções de cheio e vazio, de côncavo e convexo, de interior e exterior; numa outra série de desenhos-pinturas[7], Pedro Calhau explora as possibilidades das relações intrínsecas entre os dois domínios da expressão plástica, bem como a técnica do marmoreado (acaso/fundo/paisagem) conjugada com a representação bidimensional dos bustos em gesso (traço/primeiro plano/retrato), resultado da observação dos registos fotográficos que são agora ferramenta de trabalho e via de experimentação; presente também, uma gravura de natureza gráfica, conceptualização do trabalho e consciência de que a gramática do desenho pode ser enriquecida através de exercícios e processos de gravação; finalmente, uma instalação inédita que parte de uma reflexão em curso a propósito da potência intermedial e transmedial das disciplinas e dos meios artísticos, aqui vagamente sugerida pelo retorno ao projetor de diapositivos, uma experiência visual e auditiva: as imagens fotográficas foram primeiramente projetadas na parede do atelier do artista, de um modo rudimentar, a partir de um computador portátil, e posteriormente fotocopiadas, servindo a vontade de representação e de um maior detalhe formal, deixando transparecer que muitas das propriedades dos objetos não são visíveis e que cabe à imaginação convocá-las.
O.F.F. é também, ou sobretudo, um trabalho sobre a importância da relação entre repetição e variação na prática artística, entre a experimentação continuada e aprimorada da técnica do marmoreado, explorando a consistência da superfície de inscrição, o excesso e a interferência, o incidente labiríntico que a tinta engendra sobre o papel, o intervir e o abster e o debruçar sobre a força motriz do traço, do olhar e do movimento do corpo sobre a matéria.
Retomando a passagem em epígrafe e abrindo caminho para o próximo ponto, recordo, com Munari, um conselho de Leonardo da Vinci para que se observem as manchas de salitre como estímulo à imaginação, ou, no mesmo sentido, o gesto de Botticelli ao lançar esponjas húmidas sobre a parede de modo a obter estímulos visuais imprevistos. Poderíamos continuar a percorrer exemplos de todos os tempos e geografias, reconhecendo, pontualmente, que destas práticas repetidas à exaustão, continuam a surgir objetos que nos conseguem surpreender e cativar.
- O Elogio da Imaginação
Nem todo o ato de resistência é uma obra de arte,
embora, de certa maneira, o seja. Nem toda a obra de arte é um ato de resistência e, no entanto, de certa maneira, sê-lo-á.
Gilles Deleuze[8]
A coisa mais importante num artista é manter a sua individualidade, a sua loucura individual e, sobretudo, carregar um mundo consigo. É só isso.
Rui Chafes[9]
Nesta exposição e, naturalmente, na obra de Pedro Calhau, encontramos exemplos suficientes e diversos para falarmos de “associação livre”. Conhecendo o trabalho e os trabalhos do artista, visitando o seu espaço de laboração e olhando e escutando o modo como o faz, do processo conceptual ao construtivo, sabemos, e já o dissemos, que a liberdade, a liberdade de associar temas, processos, expressões, suportes e materiais, a liberdade na conceção mais ampla da sua essência, é epítome da obra. Não há ligações ou interligações fixas, todas elas são contingentes e deixam transparecer o sentido dessa liberdade e da imaginação, inerentes ao ato criativo, quer no plano da própria criação e produção, quer ainda no da receção da obra. Como disse o poeta, “Toda a ligação é simultaneamente liberdade.”[10]
“Como se pode imaginar o que não existe?” pergunta Wittgenstein em O Livro Azul (1933/34) ao que responde: “Se o fazemos imaginamos combinações não existentes de elementos existentes.” Citando-o, Gonçalo M. Tavares acrescenta: “ligar de outra maneira o que já existe é colocar no mundo coisas inexistentes, porque uma nova ligação entre os velhos A e B transforma A e B, inventa-os (…).”[11]
O jogo começa pela definição de algumas regras que apontam um caminho, uma direção, e pressupõe um exercício de aprendizagem, de treino e repetição e, mais do que qualquer outro predicado intrínseco, de imaginação. Umberto Eco, na sua Viagem na Irrealidade Quotidiana, considera o jogo como um tempo privilegiado, um desvio do mundo exterior, uma exploração do imaginário e da criatividade, uma brincadeira, tal como as estórias que contamos e recontamos, são o melhor modo de contrariar o imperativo de um sentido único. Há na obra de Pedro Calhau esse sentido da partilha, do lúdico, da estória por contar, da que se inventa ou reinventa na plasticidade do imaginário, dos meios e materiais que a criam e recriam, na inventiva do quotidiano criativo. É ainda a imaginação como “faculdade de nos libertarmos das imagens primeiras, de mudar as imagens”, como escreveu Bachelard[12].
As séries aqui convocadas, focam-se na relação dialética entre matéria e energia, real e construção, documento e ideia, arquivo e memória, original e cópia, prática e teoria, tratado e ensaio… para avançar apenas com algumas sugestões dialéticas.
2.1. NOUS (vária, 2016-2017) e ESTRELAS (2015-2016) – da composição
Under the stars/ I found a star/ That asked me where to go // Under the stars/ I found a star/ Lost in space // Under the road/ I found a road/ That led to another road // Under that road/ I found a road/ That led nowhere.
António Olaio[13]
Os desenhos e pinturas sobre papel e tela das séries NOUS, termo filosoficamente ambíguo, com utilizações e significações múltiplas, mas que aqui importa exatamente na sua ambiguidade e que, de forma redutora, sintetizaria como relativo à ação da mente, partem da conjugação de dois grupos de imagens: galáxias e automóveis.
Por um lado, temos a referência ao universo galáctico que não se circunscreve à configuração espacial de aglomerados de estrelas ou a figurações astrológicas, “relativo ao aspeto dos astros”, antes remete para um conjunto de morfologias, dinâmicas, densidades e energias que nos parecem essencialmente indecifráveis e ilimitadas. Assim, representar uma estrela, fazê-la sobressair no tecido imenso que a envolve, para além do denso simbolismo que carrega, é convocar tempo e espaço, matéria e éter, noite e dia, enfim, forma, luz, temperatura, movimento, velocidade… inúmeras “condições” ou elementos que servem também, de modo diverso, o léxico da criação artística. A noção de inesgotável pode aqui relacionar-se com o infinito, mas também com o indefinido e o desconhecido, o que não conhece limites ou termo, o que não se conhece, o misterioso e, simultaneamente, com a capacidade e o poder da visibilidade, associados à imaginação e à ação criativa. O inesgotável liberta-nos do real, do verdadeiro, enquanto paradigmas paralisantes ou limitadores da ação, do devir.
Por outro lado, a presença figurativa de estradas e/ou automóveis que introduzem uma expressão cinematográfica, nomeadamente no sentido da fotografia e da montagem, transportam-me, não sem um desvio um tanto abusivo, para uma ideia/imagem de Álvaro Lapa quando afirma qualquer coisa como, a figuração é o veículo e jamais o fim. Estas não são composições naturalistas, mas ficções absolutas, cenas que suspendem a representação do real e abrem lugar ao “maravilhoso”, ao artificial, ao instável…
2.2. MAPAS da imaginação: FORECAST (2015-2018) e COSMOS (2019) – da montagem
[O Atlas] Desconstrói, pela sua própria exuberância, os ideais de unicidade, de especificidade, de pureza, de conhecimento integral. É uma ferramenta, não do esgotamento lógico das possibilidades dadas, mas da inesgotável abertura às possibilidades não dadas ainda. O seu princípio, o seu motor, mais não é do que a imaginação.
Georges Didi-Huberman[14]
Forecast: A partir de três elementos ou conjuntos - um livro de alimentos de onde retira as formas que transforma em realidades irreais de superfícies sólidas (continentes, ilhas…), mapas de que se apropria e recria e que são a textura de base que no seu marmoreado serão, talvez, oceano ou mar, interrompido pela aparente aleatoriedade dos quadrados negros extraídos de palavras cruzadas que o artista dispõe no espaço amplo e aberto, em todo ele, num xadrez imaginário, onde a disposição representa os intervalos entre os termos, termos que busca num universo literário de obras que integram o cânone da imortalidade. Neste conjunto, destacaremos a importância da cor na ativação dos sentidos: a cor como elemento de duração, de demora, marcando um ritmo, não só constrói um lugar, como tem o poder de prolongar o tempo, num efeito idêntico ao que tem, ou pretende e desafia - o da inscrição textual.
Cosmos: A transcrição de um ensaio filosófico… mapas, escalas, legendas, símbolos e apontamentos gráficos, objetos arquitetónicos ou simples interrupções da paisagem, natureza ou intervenção humana, tudo se constitui como sujeitos da leitura, como fragmentos de interpretação relacional no espaço que habitam, desconstrução do conceito de janela aberta ao mundo, antes post-its, auxiliadores de memória, ícones de outras presenças. Ao contrário do marmóreo casuístico e aleatório, o traço firme e preciso de linhas coordenadas, constrói uma grelha que indicia a pretensa arrumação dos mapas, conferindo-lhes uma autenticidade apenas imaginada. Como a quadrícula axadrezada de Forecast, como a palavra cruzada que se propõe e se arruma, também a grelha na série Cosmos organiza a representação ou simula essa hipotética estrutura. A grelha emancipa-se com a vanguarda e torna-se tema da pintura e não apenas ferramenta de apoio. Tudo afinal se constitui como memória visual de uma prática e índice de um gesto criativo. Do dar a ver simultaneamente um conjunto de imagens numa relação aberta[15], surgem inúmeras outras imagens e (re)leituras (como acontece, por exemplo, com as cores…) legando ao espetador a oportunidade de participar e se demorar.
Se o Atlas Mnemosyne de Aby Warburg e a sua “iconologia dos intervalos” se tornaram referências constantes da produção teórica e artística dos nossos tempos, transversal a diversas disciplinas, e se neste sentido, o texto citado de Didi-Huberman, se tornou obra incontornável para quem procura uma aproximação a Warburg, também observamos que muitos artistas se servem essencialmente do seu método de conhecimento e de algumas premissas, desviando-as para o seu trabalho, sem procurar estabelecer um diálogo com a sua pesquisa e o seu projeto, deixando-o de algum modo pairar antes como uma afinidade eletiva. Há uma porosidade que se fomenta no sentido de desenvolver e transformar não aquilo que conhecemos mas o desconhecido ou a relação com este, de baralhar as ideias, as premissas, as regras, deixando interferir o quotidiano, a memória, a experiência, a imaginação, as histórias e assim, inevitavelmente, expandir o nosso horizonte de visibilidade e possibilidade.
A lógica da montagem não se circunscreve à combinação de textos e imagens num mesmo trabalho, mas também entre trabalhos da mesma série ou entre séries, ou entre artista e espetador. A estrada, a galáxia, a paisagem, o mapa, são lugares de referência, mas também de abertura e circulação, tanto quanto as formas informes, a quadrícula a branco e negro, a quadrícula vazia de inspiração geográfica, os cortes, os fragmentos, os vazios, os intervalos entre papéis e/ou telas: tudo é potência criativa.
Nestes trabalhos, escrita e texto remetem-nos, antes de mais, para a ideia de Wittgenstein de que a linguagem não aponta de imediato para um significado, mas para si própria. O texto manuscrito a lápis, lembrando a sua natureza efémera e contingente, pode ser visto enquanto imagem, não apenas na aparência de uma mancha que alastra, como também na ilegibilidade, no potencial de hipotéticas releituras e na dificuldade de lhe atribuir um sentido na interação que procuramos com a pintura e com a fotografia. Desvinculado da função narrativa, o texto não descreve ou informa, acrescenta apenas, do mesmo modo que uma linha, uma cor, um ícone ou mesmo um mapa, cujo desenho não representa um território determinado: inventa-o. São elementos constitutivos que antes de mais promovem uma receção fecunda e livre da obra. Exercício compulsivo de repetição e remediação, entre razão e plasticidade, intenção e alienação, persistência e deriva, o gesto da escrita convive com os demais, ora afirmando a sua singularidade, ora (con)fundindo-se num todo composto.
Motivo e vontade de representação, a montagem lembra-nos a “impureza fundamental das imagens, a sua vocação para o deslocamento”[16] e parece desafiar-nos a uma maior aproximação, do texto como da imagem, reduzindo o espaço e estendendo o tempo, o da obra e o nosso, para que possamos continuar.
- Da exposição como ensaio…
Tudo é semente.
Novalis[17]
(…) ensaiemos para ver se a coisa funciona ou não, se desvela ou turva o nosso olhar e, de um modo ou de outro, insistamos na tentativa.
Georges Didi-Huberman[18]
A exposição Do Inesgotável procura revisitar uma seleção de trabalhos do Pedro Calhau, desenho, pintura, escultura, gravura, fotografia e instalação, texto e imagem, que se entende sugestiva e representativa da sua obra, não apenas no sentido de a dar a conhecer numa dinâmica relacional mas também de ativar e questionar o processo criativo que simultaneamente a une e a liberta. Pensámos e desenhámos este projeto como uma travessia possível por um conjunto já vasto de trabalhos que nos parece reclamar um olhar abrangente, tão crítico quanto ainda e sempre experimental, que permita ensaiar ideias e coordenadas que sirvam de estímulo à participação ativa do visitante-espetador.
Por um lado, a organização do e no espaço procura acompanhar um certo registo temporal, que não entendemos como evolutivo, mas que revela um processo em curso, horizontal, expansivo, em contínuo movimento e transformação. Assim, ainda que cada sala possa remeter para um momento de criação no percurso artístico do artista, a partir de uma determinada série, convocando quer a relação intrínseca entre arte e vida, experiência e vivência, quer as práticas/questões, referências e afinidades, o sentido da incursão é rizomático e, como tal, procura promover a multiplicação das associações e das leituras.
Pensar e apresentar o trabalho do Pedro implica convocar um conjunto de conceitos e de ideias que atravessam a sua obra, destacando-se, antes de quaisquer outros, a imaginação, a associação livre e a montagem. Também os géneros na pintura, como o retrato ou a paisagem, os meios e técnicas, como o desenho e a pintura, a colagem ou o marmoreado, entre outros, assim como as metodologias, assuntos e teorias que tem vindo a desenvolver no decurso da sua pesquisa e criação artística, constituem-se, simultaneamente, como matéria e ferramenta, tema e problema. Questionar e, de certo modo, retomar um trajeto que não foi, como são poucos, previamente traçado, tendo sido antes fruto de uma prática e de uma experimentação contínuas, com uma série de repetições e variações mais ou menos programadas ou mesmo reconhecidas, de encontros e desencontros, aproximações e desvios, de vontades e de acasos, é também aferir da oportunidade, da pertinência e da consequência daquilo que foi produzido, ensaiando agora um exercício outro que é, ao mesmo tempo, de síntese e de construção, programa e ensaio.
[1] Agustina Bessa-Luís, “Os romances, as obras de arte, a expressão e a filosofia portuguesa e a liberdade do artista”, in Caderno de Significados, 2013, Lisboa: Guimarães Editores, p. 82.
[2] Shakespeare, Hamlet, II. 2.
[3] Bruno Munari, Fantasia, 1997, 2008 (3ª ed.), Lisboa: Ed. 70, p.147.
[4] A título de curiosidade, podemos também pesquisar sobre o ícone diagramático de Peirce, uma espécie de extensão do diagrama de Venn. Para Peirce os diagramas, as imagens e as metáforas, são os três tipos de hipoícones: os primeiros são entendidos enquanto “imagens em movimento do pensamento”. Ver Hartshorne, Paul Weiss (eds.), Charles Sanders Peirce Collected Papers, Vol. IV: The Simplest Mathematics, 1933, Cambridge, MA., Harvard University Press.
[5] O artista, cada vez mais consciente do seu trabalho enquanto processo, sente-se impelido a escrever, a reunir ideias e agrupar imagens, dando origem, em alguns casos, a pequenas edições, a livros de artista.
[6] Bruno Munari, op. cit. p.30.
[7] Recordo aqui uma feliz passagem de José Luís Porfírio, numa breve crítica publicada no semanário Expresso em 2015, a propósito de uma exposição do Pedro: “(…) o gesto do pintor que desenha com o pincel, tanto na definição quanto na indefinição das formas, uma fronteira, portanto.”
[8] Tradução livre da autora, a partir do original: Tout acte de résistance n’est pas une œuvre d’art bien que, d’une certaine manière elle en soit. Toute œuvre d’art n’est pas un acte de résistance et pourtant, d’une certaine manière, elle l’est, Gilles Deleuze, “Qu’est-ce que l’acte de création?”, conferência proferida em 1987 na Fundação Femis (Fondation Européenne pour les Métiers de L'iamge et du Son) e publicada na íntegra em 1988 na revista Trafic, nº 27. Ver Gilles Deleuze, "O Ato de Criação", https://www.youtube.com/watch?v=a_hifamdISs .
[9] Rui Chafes, “Textos para Durante o Fim, filme de João Trabulo (2003)”, in O Silêncio de…, 2006, Lisboa: Assírio & Alvim, p. 95.
[10] Novalis, (1798), Fragmentos de Novalis, 1992, Lisboa: Assírio & Alvim, p.73.
[11] Gonçalo M. Tavares, 2013, Atlas do Corpo e da Imaginação: teorias, fragmentos e imagens, Lisboa: Ed. Caminho, p.502.
[12]Gastond Bachelard, citado por Gonçalo M. Tavares, op. cit., p.377.
[13]Under the stars, video (4’40’’), 2006, cd Blaupunkt Blues (Lux Records), António Olaio e João Taborda.
[14] Georges Didi-Huberman, Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta, 2013, Lisboa: KKYM, p.13.
[15] Recordo aqui as palavras de António Olaio que me parecem oportunas: “Como qualquer artista sou um técnico de estímulos. É como um cientista a misturar substâncias. Para a reação acontecer os reagentes têm que estar em proporções que resultem. E essa medida não está na convergência das mensagens. Estará sobretudo nas várias divergências complementares que as mensagens tenham.” António Olaio, I THINK DIFFERENTLY NOW THAT I CAN PAINT, 2007, Guimarães: Centro Cultural Vila-Flôr, p.39.
[16] Geoges Didi-Huberman, op. cit, p. 14.
[17] Novalis, op. cit., p.49.
[18] Georges Didi-Huberman, op. cit, p. 248.