Ao Longo De P. Calhau
Sérgio C. Coutinho (Doutor)
Historiador da Arte
Acordou no meio da Floresta, tinha acabado de nascer do seu ventre. Abriu os olhos claros iguais aos da Mãe contemplando o céu riscado por troncos de costas cansadas. No topo de uma das árvores julgou avistar um vestido servindo de bandeira – seria?
Apoiando o corpo sobre as mãos e pés, levanta-se qual cometa ainda quente da queda. De pernas curtas e costas espaçosas lembrava um urso que prefere andar de pé. Na sua tribo chamam-no Vaxuu, que quer dizer pedra, seixo, calhau – era nelas que lia o destino dos seus. Ainda se recordam quando ele em pequeno começou a colecionar pedrinhas de diferentes cores em linha, dispostas numa gradação infinita de brancos para cinzentos, azuis, verdes, amarelos, cores dentro de outras cores. Primeiro expulsaram-no com rugidos e assobios, mas a criança permaneceu indiferente, pegou nas pedras uma a uma e criou um círculo para o qual convidou os loucos e os doentes. Pediu-lhes que escolhessem uma pedra. Essa pedra é vossa, para sempre, agora têm a obrigação de encontrar uma pedra mais especial para preencher o vazio do círculo. Em permanente metamorfose, as pedras vistas do céu formam um halo insaciável que talvez possamos definir como... Arte. Só Vaxuu sereno, aparentemente apático, comanda o trânsito místico das pedras... o artista.
Corre o ano de 1508, a alma de Vaxuu instala-se num corpo de um marujinho que observa um amontoado de pedras que servirão para erguer uma Fortaleza Militar. Depois do motim dos capitães, Afonso de Albuquerque é forçado a abandonar Ormuz e o Forte de Nossa Senhora da Vitória fica como um puzzle incompleto na mesa da família. Como ficaria bela a ilha com um castelo amarelo bem visível de todo o Golfo Pérsico! Mas não, o Forte apenas existiria na imaginação do marujinho ou numa tela.
Só o rapaz se voluntariou para ficar, como representação da Coroa Portuguesa, insuflando vigor no débil esqueleto de pedra. Afonso aquiesceu. E o frágil marujinho, feito guerreiro a valer por mil, assistiu como estátua ao afastamento da armada. Com água potável reduzida e rações insuficientes, era uma missão condenada ao fracasso.
Aquela alma, que em tempos longínquos tinha abraçado no seu círculo de loucos e doentes, encontrava-se agora ele débil, uivando contra os calhaus inertes estarrecidos no desejo de serem enxertos de pele de um fraco Forte. Diria até que ele seria um touro de brincar no meio de uma Praça deserta.
Passaram-se meses.
O período das chuvas trouxe algum alento ao jovem que, para combater a solidão, começou a modelar com argila cabeças de nebulosa humanidade. Na estação seca colocou-as em cima das pedras sem dono. Eram bustos toscos, seres divinos, fomes primitivas. Em cada rosto que observava encontrava sempre um novo esgar, uma estranha pulsão, o gesto de quem procura a raiz da civilização. Adorou-os, pintou-os, perseguiu-os. Eles foram as únicas testemunhas da sua loucura, doença, morte.
Aquela alma só regressou séculos mais tarde. Com uma curiosidade renovada, mistura a identidade de Vaxuu das pedrinhas e do marujinho demente. Está sedento de vida, porém, não sabe como se pôr à prova. Começa por tirar apontamentos de tudo, escreve, interessa-se por mapas, recorta fotografias diversas, finalmente, sonha com automóveis qual cão louco ladrando à sua passagem. São os desportivos que mais o atraem, deseja possuir a sua velocidade, vê beleza na condução exímia e eficaz, na simbiose entre a máquina e o homem, mas não possui o talento nem os meios para competir. Sonha noite e dia com automóveis de faróis acesos abandonados no meio da estrada, quais animais estupendos pastando no alcatrão debaixo das estrelas.
Por incrível que pareça, consegue convencer um amigo piloto a levá-lo consigo dentro do Mercedes 300 SLR nas Mille Miglia – uma prova com cerca de 1600 Km, de Brescia a Roma, e Roma a Brescia, que tem lugar desde 1928. É uma relação interesseira, enquanto o piloto acelera ele lê indicações específicas sobre as curvas, velocidades e pontos de travagem. Corre o boato entre os italianos que fazem batota, enquanto um acelera em direção a Roma o outro lê-lhe a Bíblia, competir assim é fácil.
Os dois vencem, nasce a profissão de copiloto que é, de facto, um subgénero do guia espiritual (ou será do pintor?).
Aquela alma acelera, deseja mais e renasce enfim com o nome de Pedro Calhau, alentejano: “romantismo, sim, mas devagar” – aldrabando Álvaro de Campos.
Confesso-vos, choquei com ele há uns dez anos atrás em Lisboa, os dois estudávamos para podermos ser professores no liceu, ambos gostávamos de ler Peter Sloterdijk e beber bom tinto, bem como partilhávamos algum desnorteio sobre qual seria o nosso futuro – base mais do que suficiente para criar uma amizade sólida. Pedro tornou-se professor no Ar.Co, eu terminei o meu doutoramento em História de Arte Contemporânea; ele expôs em galerias, eu disse poesia em palco. Hoje regressa para dar aulas de desenho no liceu, eu frito umas costeletas enquanto me conta sobre a próxima exposição, além do súbito interesse por mapas e globos; o vinho que trouxe é excelente e eu tornei-me um virtuoso na cozinha.
Quando abrimos a segunda garrafa, alonga-se sobre as suas mais recentes pesquisas, segue uma fórmula rigorosa (a do trabalho) e é através da repetição que atualiza a sua procura no atelier. O tópico interessa-me, pergunto-lhe se o atelier é o seu santuário ou a sua fábrica. Ele não se revê em nenhuma das hipóteses, sublinha antes o caráter místico e operário da sua ação. Explica-me, por fim, que o atelier é a sua ilha sem nenhuma fortaleza, só nesse despojamento recolhe as pedrinhas dos loucos de tempos idos que lhe indicam as cores e as formas a explorar. É um trabalho meticuloso e sério, devendo estudar primeiramente quando pode acelerar e quando deve travar em cada caminho que elege, ao mesmo tempo que não pode negar a espontaneidade do ato. Concordo com ele, temperar costeletas com batatas cozidas com uma ligeira fritada é sem dúvida complexo.
Pedro oferece um osso à minha cadela, fazemos um brinde à sua próxima exposição e ao espetáculo que vou levar à Fábrica Braço de Prata neste sábado. Posso não o ter encontrado anteriormente, porém, não temos desculpa para não nos cruzarmos noutras vidas daqui para a frente – a não ser que deixe de existir, nesse longo futuro, bom vinho tinto.
Sérgio C. Coutinho (Doutor)
Historiador da Arte
Acordou no meio da Floresta, tinha acabado de nascer do seu ventre. Abriu os olhos claros iguais aos da Mãe contemplando o céu riscado por troncos de costas cansadas. No topo de uma das árvores julgou avistar um vestido servindo de bandeira – seria?
Apoiando o corpo sobre as mãos e pés, levanta-se qual cometa ainda quente da queda. De pernas curtas e costas espaçosas lembrava um urso que prefere andar de pé. Na sua tribo chamam-no Vaxuu, que quer dizer pedra, seixo, calhau – era nelas que lia o destino dos seus. Ainda se recordam quando ele em pequeno começou a colecionar pedrinhas de diferentes cores em linha, dispostas numa gradação infinita de brancos para cinzentos, azuis, verdes, amarelos, cores dentro de outras cores. Primeiro expulsaram-no com rugidos e assobios, mas a criança permaneceu indiferente, pegou nas pedras uma a uma e criou um círculo para o qual convidou os loucos e os doentes. Pediu-lhes que escolhessem uma pedra. Essa pedra é vossa, para sempre, agora têm a obrigação de encontrar uma pedra mais especial para preencher o vazio do círculo. Em permanente metamorfose, as pedras vistas do céu formam um halo insaciável que talvez possamos definir como... Arte. Só Vaxuu sereno, aparentemente apático, comanda o trânsito místico das pedras... o artista.
Corre o ano de 1508, a alma de Vaxuu instala-se num corpo de um marujinho que observa um amontoado de pedras que servirão para erguer uma Fortaleza Militar. Depois do motim dos capitães, Afonso de Albuquerque é forçado a abandonar Ormuz e o Forte de Nossa Senhora da Vitória fica como um puzzle incompleto na mesa da família. Como ficaria bela a ilha com um castelo amarelo bem visível de todo o Golfo Pérsico! Mas não, o Forte apenas existiria na imaginação do marujinho ou numa tela.
Só o rapaz se voluntariou para ficar, como representação da Coroa Portuguesa, insuflando vigor no débil esqueleto de pedra. Afonso aquiesceu. E o frágil marujinho, feito guerreiro a valer por mil, assistiu como estátua ao afastamento da armada. Com água potável reduzida e rações insuficientes, era uma missão condenada ao fracasso.
Aquela alma, que em tempos longínquos tinha abraçado no seu círculo de loucos e doentes, encontrava-se agora ele débil, uivando contra os calhaus inertes estarrecidos no desejo de serem enxertos de pele de um fraco Forte. Diria até que ele seria um touro de brincar no meio de uma Praça deserta.
Passaram-se meses.
O período das chuvas trouxe algum alento ao jovem que, para combater a solidão, começou a modelar com argila cabeças de nebulosa humanidade. Na estação seca colocou-as em cima das pedras sem dono. Eram bustos toscos, seres divinos, fomes primitivas. Em cada rosto que observava encontrava sempre um novo esgar, uma estranha pulsão, o gesto de quem procura a raiz da civilização. Adorou-os, pintou-os, perseguiu-os. Eles foram as únicas testemunhas da sua loucura, doença, morte.
Aquela alma só regressou séculos mais tarde. Com uma curiosidade renovada, mistura a identidade de Vaxuu das pedrinhas e do marujinho demente. Está sedento de vida, porém, não sabe como se pôr à prova. Começa por tirar apontamentos de tudo, escreve, interessa-se por mapas, recorta fotografias diversas, finalmente, sonha com automóveis qual cão louco ladrando à sua passagem. São os desportivos que mais o atraem, deseja possuir a sua velocidade, vê beleza na condução exímia e eficaz, na simbiose entre a máquina e o homem, mas não possui o talento nem os meios para competir. Sonha noite e dia com automóveis de faróis acesos abandonados no meio da estrada, quais animais estupendos pastando no alcatrão debaixo das estrelas.
Por incrível que pareça, consegue convencer um amigo piloto a levá-lo consigo dentro do Mercedes 300 SLR nas Mille Miglia – uma prova com cerca de 1600 Km, de Brescia a Roma, e Roma a Brescia, que tem lugar desde 1928. É uma relação interesseira, enquanto o piloto acelera ele lê indicações específicas sobre as curvas, velocidades e pontos de travagem. Corre o boato entre os italianos que fazem batota, enquanto um acelera em direção a Roma o outro lê-lhe a Bíblia, competir assim é fácil.
Os dois vencem, nasce a profissão de copiloto que é, de facto, um subgénero do guia espiritual (ou será do pintor?).
Aquela alma acelera, deseja mais e renasce enfim com o nome de Pedro Calhau, alentejano: “romantismo, sim, mas devagar” – aldrabando Álvaro de Campos.
Confesso-vos, choquei com ele há uns dez anos atrás em Lisboa, os dois estudávamos para podermos ser professores no liceu, ambos gostávamos de ler Peter Sloterdijk e beber bom tinto, bem como partilhávamos algum desnorteio sobre qual seria o nosso futuro – base mais do que suficiente para criar uma amizade sólida. Pedro tornou-se professor no Ar.Co, eu terminei o meu doutoramento em História de Arte Contemporânea; ele expôs em galerias, eu disse poesia em palco. Hoje regressa para dar aulas de desenho no liceu, eu frito umas costeletas enquanto me conta sobre a próxima exposição, além do súbito interesse por mapas e globos; o vinho que trouxe é excelente e eu tornei-me um virtuoso na cozinha.
Quando abrimos a segunda garrafa, alonga-se sobre as suas mais recentes pesquisas, segue uma fórmula rigorosa (a do trabalho) e é através da repetição que atualiza a sua procura no atelier. O tópico interessa-me, pergunto-lhe se o atelier é o seu santuário ou a sua fábrica. Ele não se revê em nenhuma das hipóteses, sublinha antes o caráter místico e operário da sua ação. Explica-me, por fim, que o atelier é a sua ilha sem nenhuma fortaleza, só nesse despojamento recolhe as pedrinhas dos loucos de tempos idos que lhe indicam as cores e as formas a explorar. É um trabalho meticuloso e sério, devendo estudar primeiramente quando pode acelerar e quando deve travar em cada caminho que elege, ao mesmo tempo que não pode negar a espontaneidade do ato. Concordo com ele, temperar costeletas com batatas cozidas com uma ligeira fritada é sem dúvida complexo.
Pedro oferece um osso à minha cadela, fazemos um brinde à sua próxima exposição e ao espetáculo que vou levar à Fábrica Braço de Prata neste sábado. Posso não o ter encontrado anteriormente, porém, não temos desculpa para não nos cruzarmos noutras vidas daqui para a frente – a não ser que deixe de existir, nesse longo futuro, bom vinho tinto.