TRUE NODE
Parte II: Cabeça
The moon and the sun are eternal travelers. Even the years wander on. A lifetime adrift in a boat, or in old age leading a tired horse into the years, every day is a journey, and the journey itself is home.
Matsuo Basho: Oku no Hosomichi (The Narrow Road to the Interior)
Há uma coisa de forma confusa
Nascida antes do céu e da Terra.
Silenciosa e vazia,
Está só e nunca muda.
Gira e não se cansa.
É capaz de ser a mãe do mundo.
Não sei como se chama,
Por isso chamo-lhe “O Caminho”.
Dou-lhe o nome provisório de “O Grande”.
Sendo grande, pode dizer-se que está a recuar,
Recuando, pode dizer-se que é longínquo,
Sendo longínquo, pode dizer-se que está a regressa.
Lao-tsé, Tao Te Ching [China, c.600 a.C.])
A 15 de Fevereiro de 1961, Antonioni viajou até Florença para filmar um eclipse solar total que seria visível nesta parte do país. Como relata no prefácio de uma edição que compila alguns dos seus argumentos, “naquela escuridão, naquele frio gélido, naquele silêncio tão diferente de todos os outros silêncios, naquela quase completa imobilidade, aqueles rostos pálidos de cor de terra, especulei se até os sentimentos são suspensos durante um eclipse”.
Um ano depois - no último filme da sua trilogia da incomunicabilidade - O Eclipse, começa com uma noite de discussão, procura e esgotamento de um casal totalmente vazio: de palavras, de emoções. Como o título sugere: um obscurecimento, um esvaecimento da luz acompanhado por personagens imersas na zona nebulosa da incerteza, ou na inconsistência do amor. Surpreendentes como a vida, os acasos sucedem-se. Na última cena, outra relação termina agora sem diálogo. Apenas um mero dissipar onde o que resta é o silêncio. Tempos mortos que se relacionam com a arquitectura da cidade: a câmera percorre os caminhos outrora habitados, espaços vazios de pessoas, cantos, sarjetas, prédios em construção, um close-up numa rua iluminada, o poste cintilante. Será este o eclipse? Quem, ou quê, é ofuscado? Tratar-se-á dessa efêmera união de dois corpos, ou o potencial apagamento da vida humana (através do progresso desenfreado, profecia do apocalipse, a bomba atômica…)?
Se na primeira parte deste ciclo expositivo, cauda, atentamos às raízes e à sua correlação com o impulso da verticalidade, aludindo ao movimento vital necessário ao avanço do tempo, da renovação, da liberdade e da perenidade; na segunda e última parte, cabeça, enveredamos noutra direção, talvez em frente, ou na vontade de romper o círculo anunciado. Rumo ao cosmos e incerto que representa o avanço; o desejo do progresso e a inviabilidade da sua ruína. A ânsia pelo descobrimento é simultânea à necessidade de o reavaliar, para lá do discurso hegemônico da globalização acelerada. Como pensar um futuro que seja igualmente justo para as gerações futuras? Como perscrutar os sinais e as nuances que os eclipses lembram, e desbravar a estrada do amanhã? Estrelas, planetas, fenómenos naturais: dispostos no céu em aparente desordem são arquétipos da permanência num mundo transitório.
Neste eco, nas obras de Pedro Calhau somos conduzidos a territórios longínquos, que podem ser confundidos com mapas sem necessárias correspondências. Lugares inventados, rotas sem direção, numa vontade de estruturar uma amálgama de referências e reafirmar novos sentidos e paisagens de associações livres; um entrelaçar de relações de origem cósmica (e cómica), da matemática à metafísica, na tentativa de auscultar este possível trajecto. A sua prática organiza-se por séries de diversos anos de produção, aqui dispostos com novas “modulações”, indicando pistas tal como as estrelas, “enchendo o firmamento nocturno como faróis num oceano de escuridão, guiaram os nossos pensamentos ao longo de milénios até ao ponto seguro da razão” [Heinz R. Pagels “Simetria Perfeita”, 1990]. Por sua vez, e neste modo de fazer que privilegia os encontros “aleatórios", “A Terra é azul como uma laranja” de Rita Senra lembra o primeiro verso dum poema do Paul Éluard. São as várias camadas de papel industrial, acrílico, guache que interceptam a obra e a encobrem de cor e diferentes ritmos, sombras, saliências, reiterando na repetição destes gestos uma prática tanto experimental como precisa, persistente.
Também Hugo Bernardo, em “Meta-Reflexo”, deixa revelar a intenção de desdobramento do significado e experiência pelo mecanismo osmóptico. A instalação apresenta cabeças de proveniências diversas, parte da pesquisa (maioritariamente em pintura) do artista. De figuras mitológicas a futuristas, num emaranhar de perspectivas e combinações. Um dispositivo que joga com as transparências e permite a alternância entre aquilo que reflecte e aquilo que permanece: possibilitando novos ângulos a cada olhar, e entendimentos diversos de um “todo” fragmentado, de um “eu” composto. O espelho, o vidro: sujeitos ao movimento, à luz, à arquitectura, ao outro e a nós próprios. Diogo Bolota, também aponta a este imaginário heterogéneo, surrealista até. Aqui navegamos entre um sonho bizarro, onde o detalhe dos objectos convive com a familiaridade dos mesmos, à tensão de uma sexualidade latente. “Beijo”, um par de dentaduras num momento de erotismo anunciado, congelado, reitera este horizonte poético, trágico mas redentor. A cristalização de um momento como se os sentimentos pudessem “ser suspensos”. Ou em “Penthouse”, onde o artista oferece a possibilidade de acesso a um mundo interior, como um voyeur. O mundo das personagens, das bocas, talvez velhice ou falsidade. Como se através do carácter das habitações, tivéssemos a capacidade de percepcionar e decifrar as características psicológicas e emocionais de quem as reside. O objecto arquitectónico da casa encerra um universo de identificação emocional, como um espelho de quem a habita.
É a sensação de estranheza, risco, casualidade, e oscilação que contamina a exposição e aponta a possibilidade de seguir esta viagem, de contemplar os mistérios da caminhada. Tal como um eclipse, imbuído de tradição, história e mito, sempre alvo de fascínio do ser humano que se comprometeu a decifrar as suas próprias origens com base num espaço atravessado por intenções sobre-humanas. Um espaço ilimitado que acomoda também as vontades antagónicas dos deuses e surge nos mapas sob a forma de narrativas e signos vários. Afinal, como trata Carl Sagan [Cosmos, 1980], “a mais insignificante contemplação do cosmos emociona-nos, provoca-nos um arrepio, embarga-nos a voz, causa-nos a sensação suave de uma recordação distante. Sabemos que nos estamos a aproximar do maior de todos os mistérios. O tamanho e a idade do cosmos ultrapassam a comum compreensão humana. Perdida algures entre a imensidão e a eternidade fica a nossa minúscula casa planetária”.
Ainda assim, teremos a esperança de que a vida na Terra possa partilhar da permanência das estrelas, das galáxias e do próprio universo?
Carolina Trigueiros
Parte II: Cabeça
The moon and the sun are eternal travelers. Even the years wander on. A lifetime adrift in a boat, or in old age leading a tired horse into the years, every day is a journey, and the journey itself is home.
Matsuo Basho: Oku no Hosomichi (The Narrow Road to the Interior)
Há uma coisa de forma confusa
Nascida antes do céu e da Terra.
Silenciosa e vazia,
Está só e nunca muda.
Gira e não se cansa.
É capaz de ser a mãe do mundo.
Não sei como se chama,
Por isso chamo-lhe “O Caminho”.
Dou-lhe o nome provisório de “O Grande”.
Sendo grande, pode dizer-se que está a recuar,
Recuando, pode dizer-se que é longínquo,
Sendo longínquo, pode dizer-se que está a regressa.
Lao-tsé, Tao Te Ching [China, c.600 a.C.])
A 15 de Fevereiro de 1961, Antonioni viajou até Florença para filmar um eclipse solar total que seria visível nesta parte do país. Como relata no prefácio de uma edição que compila alguns dos seus argumentos, “naquela escuridão, naquele frio gélido, naquele silêncio tão diferente de todos os outros silêncios, naquela quase completa imobilidade, aqueles rostos pálidos de cor de terra, especulei se até os sentimentos são suspensos durante um eclipse”.
Um ano depois - no último filme da sua trilogia da incomunicabilidade - O Eclipse, começa com uma noite de discussão, procura e esgotamento de um casal totalmente vazio: de palavras, de emoções. Como o título sugere: um obscurecimento, um esvaecimento da luz acompanhado por personagens imersas na zona nebulosa da incerteza, ou na inconsistência do amor. Surpreendentes como a vida, os acasos sucedem-se. Na última cena, outra relação termina agora sem diálogo. Apenas um mero dissipar onde o que resta é o silêncio. Tempos mortos que se relacionam com a arquitectura da cidade: a câmera percorre os caminhos outrora habitados, espaços vazios de pessoas, cantos, sarjetas, prédios em construção, um close-up numa rua iluminada, o poste cintilante. Será este o eclipse? Quem, ou quê, é ofuscado? Tratar-se-á dessa efêmera união de dois corpos, ou o potencial apagamento da vida humana (através do progresso desenfreado, profecia do apocalipse, a bomba atômica…)?
Se na primeira parte deste ciclo expositivo, cauda, atentamos às raízes e à sua correlação com o impulso da verticalidade, aludindo ao movimento vital necessário ao avanço do tempo, da renovação, da liberdade e da perenidade; na segunda e última parte, cabeça, enveredamos noutra direção, talvez em frente, ou na vontade de romper o círculo anunciado. Rumo ao cosmos e incerto que representa o avanço; o desejo do progresso e a inviabilidade da sua ruína. A ânsia pelo descobrimento é simultânea à necessidade de o reavaliar, para lá do discurso hegemônico da globalização acelerada. Como pensar um futuro que seja igualmente justo para as gerações futuras? Como perscrutar os sinais e as nuances que os eclipses lembram, e desbravar a estrada do amanhã? Estrelas, planetas, fenómenos naturais: dispostos no céu em aparente desordem são arquétipos da permanência num mundo transitório.
Neste eco, nas obras de Pedro Calhau somos conduzidos a territórios longínquos, que podem ser confundidos com mapas sem necessárias correspondências. Lugares inventados, rotas sem direção, numa vontade de estruturar uma amálgama de referências e reafirmar novos sentidos e paisagens de associações livres; um entrelaçar de relações de origem cósmica (e cómica), da matemática à metafísica, na tentativa de auscultar este possível trajecto. A sua prática organiza-se por séries de diversos anos de produção, aqui dispostos com novas “modulações”, indicando pistas tal como as estrelas, “enchendo o firmamento nocturno como faróis num oceano de escuridão, guiaram os nossos pensamentos ao longo de milénios até ao ponto seguro da razão” [Heinz R. Pagels “Simetria Perfeita”, 1990]. Por sua vez, e neste modo de fazer que privilegia os encontros “aleatórios", “A Terra é azul como uma laranja” de Rita Senra lembra o primeiro verso dum poema do Paul Éluard. São as várias camadas de papel industrial, acrílico, guache que interceptam a obra e a encobrem de cor e diferentes ritmos, sombras, saliências, reiterando na repetição destes gestos uma prática tanto experimental como precisa, persistente.
Também Hugo Bernardo, em “Meta-Reflexo”, deixa revelar a intenção de desdobramento do significado e experiência pelo mecanismo osmóptico. A instalação apresenta cabeças de proveniências diversas, parte da pesquisa (maioritariamente em pintura) do artista. De figuras mitológicas a futuristas, num emaranhar de perspectivas e combinações. Um dispositivo que joga com as transparências e permite a alternância entre aquilo que reflecte e aquilo que permanece: possibilitando novos ângulos a cada olhar, e entendimentos diversos de um “todo” fragmentado, de um “eu” composto. O espelho, o vidro: sujeitos ao movimento, à luz, à arquitectura, ao outro e a nós próprios. Diogo Bolota, também aponta a este imaginário heterogéneo, surrealista até. Aqui navegamos entre um sonho bizarro, onde o detalhe dos objectos convive com a familiaridade dos mesmos, à tensão de uma sexualidade latente. “Beijo”, um par de dentaduras num momento de erotismo anunciado, congelado, reitera este horizonte poético, trágico mas redentor. A cristalização de um momento como se os sentimentos pudessem “ser suspensos”. Ou em “Penthouse”, onde o artista oferece a possibilidade de acesso a um mundo interior, como um voyeur. O mundo das personagens, das bocas, talvez velhice ou falsidade. Como se através do carácter das habitações, tivéssemos a capacidade de percepcionar e decifrar as características psicológicas e emocionais de quem as reside. O objecto arquitectónico da casa encerra um universo de identificação emocional, como um espelho de quem a habita.
É a sensação de estranheza, risco, casualidade, e oscilação que contamina a exposição e aponta a possibilidade de seguir esta viagem, de contemplar os mistérios da caminhada. Tal como um eclipse, imbuído de tradição, história e mito, sempre alvo de fascínio do ser humano que se comprometeu a decifrar as suas próprias origens com base num espaço atravessado por intenções sobre-humanas. Um espaço ilimitado que acomoda também as vontades antagónicas dos deuses e surge nos mapas sob a forma de narrativas e signos vários. Afinal, como trata Carl Sagan [Cosmos, 1980], “a mais insignificante contemplação do cosmos emociona-nos, provoca-nos um arrepio, embarga-nos a voz, causa-nos a sensação suave de uma recordação distante. Sabemos que nos estamos a aproximar do maior de todos os mistérios. O tamanho e a idade do cosmos ultrapassam a comum compreensão humana. Perdida algures entre a imensidão e a eternidade fica a nossa minúscula casa planetária”.
Ainda assim, teremos a esperança de que a vida na Terra possa partilhar da permanência das estrelas, das galáxias e do próprio universo?
Carolina Trigueiros